Vandalismo é combustível do ódio

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Autocarros e viaturas incendiadas, equipamentos públicos destruídos, centenas de polícias mobilizados para diferentes áreas da Grande Lisboa e Margem Sul, vandalismo, cercos e barreiras de todo o tipo que condicionam a vida familiar e profissional de inúmeros cidadãos, um clima de alarme social que não sai do ciclo noticioso e que se propaga descontroladamente nas redes sociais. É difícil imaginar que alguém consiga retirar benefícios do que se passou nos últimos dias, após a morte de Odair Moniz, alvejado por um polícia na madrugada de segunda-feira no Bairro do Zambujal. Mas, sim, há quem retire vantagens.

Alguns dos que estão a causar desacatos nas ruas são guiados por motivos que extravasam a contestação à ação policial e à repressão excessiva que, alegadamente, incide sobre os bairros sociais da Grande Lisboa. Usam um acontecimento trágico para reforçar comportamentos que são típicos da atividade de gangues juvenis criminosos, um fenómeno que tem vindo a aumentar em Portugal, como dá conta o último Relatório Anual de Segurança Interna, e que precisa urgentemente de uma estratégia para ser contido.

O tipo de ações que se viram, através de manifestações de força perante as autoridades, servem o interesse de marcação de território num clima de tensão permanente com as forças de segurança que apenas conduz a mais episódios de violência. Tais atos de vandalismo são também uma espécie de medalha no peito de quem os pratica junto dos pares, que lhes reforça o estatuto na rua. Não é só rebeldia ou revolta (embora, como é evidente, também existam neste caso). É crime. É ganhar poder através da força.

Ao mesmo tempo, estes atos (e as imagens fortes que proporcionam) são combustível bem-vindo para canais da extrema-direita que, através das redes sociais, disseminam mensagens racistas, as quais, na caça de um like ou de uma partilha, não separaram o trigo do joio, contribuindo para estigmatizar de forma injusta comunidades e bairro inteiros. 

Portanto, o que vemos são os atos de vandalismo a alimentar os que veiculam mensagens de ódio. E assim se dá corpo à tal “perceção de insegurança” generalizada que já é presença assídua no discurso político em Portugal.

A política, aliás, é outro campo de batalha cada vez mais azedo. Num extremo exige-se louvores ao polícia que matou sem que ainda se saiba exatamente por que o fez. No outro extremo, somam-se desculpas para aos atos de vandalismo e cai-se no mesmo erro de juntar todos os polícias no mesmo saco, os bons e os maus. 

Se há quem ganhe com os tumultos, são muitos mais os que ficam a perder – acima de todos, a família de Odair Moniz, que merece ser respeitada no luto e ter respostas claras e categóricas sobre o que realmente se passou naquela madrugada. No rol de prejudicados entram todos os habitantes dos bairros afetados pelos desacatos. Prejudicados não apenas naquilo que é o seu dia a dia, mas também a longo prazo: ter um endereço postal na Cova da Moura não deveria fechar portas e oportunidades a ninguém, mas o elevador social nestes bairros está há muito avariado e só funciona em raras ocasiões.

Depois há ainda a imagem da PSP, que sai afetada num todo. Ter jovens polícias, recém-formados, a prestar serviço num dos bairros mais sensíveis da Grande Lisboa e que disparam a matar sobre um suspeito, sem que a primeira análise das imagens de videovigilância mostrem Odair a segurar qualquer arma, levanta questões sobre o grau de preparação (técnica e psicológica) dos agentes para atuarem neste tipo de zonas. A isto acrescenta-se as versões contraditórias entre o que disse o comando policial e a versão que o agente terá prestado no depoimento à PJ, o que só reforça as dúvidas sobre o que realmente se passou. 

O que se pede agora é rapidez nas diferentes investigações ao caso: uma interna na PSP, outra disciplinar na Inspeção-Geral da Administração Interna e outra criminal conduzida pelo MP, coadjuvado pela PJ.

Como disse ao DN o sociólogo Nelson Lourenço, investigador académico de Criminalidade e Violência, o país precisa que “os cidadãos considerem legítima a ação da polícia” para que esta nunca perca a autoridade e mantenha intacta a capacidade de manter a população em segurança. É por isso que o apuramento da verdade é urgente e as explicações a dar ao país têm de ser inequívocas e muito mais claras do que as que têm vindo a público até agora.

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