Uma revelação
Desde há alguns anos, tenho participado no júri de um prémio literário instituído pela Câmara Municipal de S. João da Madeira, prémio para livros de poesia inéditos, de seu nome Prémio João da Silva Correia.
Este ano (sem desprimor para os anteriores premiados) surgiu-nos um notável e original livro de poemas, que, a meu ver, merece ter a maior divulgação.
Estes Manuscritos do Mar Báltico, do poeta que prefere chamar-se Francisco Teixeira Lopes, constituíram uma surpresa e uma descoberta.
A poesia, ensinou-nos Pessoa, é uma forma de despersonalização (Emily Dickinson dizia mesmo que “o poeta é um ser suposto”). Antes do poeta dos heterónimos, essa despersonalização da lírica conheceu antecedentes, menos radicais que o seu “drama em gente”, nos chamados “poemas dramáticos” dos vitorianos ingleses (Browning, Tennyson), em que o poeta entrega a sua voz a uma personagem, real ou imaginária, que conduz a voz lírica na construção dessa personagem, da sua história e dos seus pensamentos.
Deste modo, Francisco Teixeira Lopes, nome que é já um pseudónimo, constrói nos seus admiráveis poemas uma voz ficcional feminina, que nos fala da lonjura dos países bálticos e da sua História que, como a de toda a Europa Oriental, é marcada pelas cicatrizes deixadas pelos massacres dos judeus perpetrados pelos nazis alemães, com a cumplicidade de muitos antissemitas locais, pela memória asfixiante da dominação soviética e do seu quotidiano de mentira e servidão, por tudo de que foi feita a História e a memória recentes daquelas nações à beira do Mar Báltico.
Irina Rodrigues, a personagem deste poema dramático, suposta autora dos poemas, conta-nos, em textos duros e sem contemplações, a sua história, desde rapariguinha até à mulher de 60 anos que escreve os poemas.
Esta é a criação de um poeta de grande rigor na escrita, ligado a um profundo conhecimento da História, que nos vem deixar aqui uma homenagem, de grande subtileza, que não exclui o horror, a esses povos do Báltico e a tudo aquilo que atravessaram, sofreram e até mesmo perpetraram, pois não há povos inocentes.
E, na verdade, tudo no texto poético-dramático de Francisco Teixeira Lopes segue, sem falhas, este pressuposto biográfico, criando uma poderosa ficção histórica em forma de poesia. Assim explica o autor esta dupla despersonalização:
“Estive a reler o texto, escrito entre 2011 e 2012, depois de duas grandes viagens pela zona do Báltico em que criei uma persona feminina para escrever estes poemas, seguindo o exemplo de outros poetas que criaram personas literárias a partir das suas experiências de fluidez e de errâncias geográficas e políticas.”
Ouvida a explicação do autor para a sua rede de pseudónimos, construída não no modo propriamente dramático dos heterónimos de Pessoa, mas antes como uma sucessão de poemas dramáticos, no sentido dos de Browning ou Tennyson, em que uma personagem ficcional, esta Irina Rodrigues, frontal na sua dureza e às vezes brutal na sua expressão, nos vem transmitir as duras e amargas realidades da sua vida e da sua história, podemos ler estes poemas, um a um, presos à “suspensão da incredulidade” que nos pede este jogo de pseudónimos, mas não menos atentos à realidade histórica evocada.
Estes Manuscritos do Mar Báltico constituem uma revelação para a nossa poesia. A sua escrita tensa e rigorosa, a sua capacidade de alusão e de intensificação de realidades que conhecemos de longe, aliam-se a um conhecimento invulgar da grande poesia russa, que acompanha constantemente o percurso da “persona” Irina Rodrigues.
Francisco Teixeira Lopes, pseudónimo de um poeta a descobrir!
(Manuscritos do Mar Báltico, Âncora Editora, Lisboa, Maio de 2024)