Uma rentrée bem complexa: e agora?
Estamos de volta, depois da pausa de agosto. É a chamada rentrée política, a nível internacional sempre marcada pela abertura de um novo ciclo anual da Assembleia Geral das Nações Unidas. Assim acontecerá na próxima semana, com os líderes mundiais a dar os toques finais aos discursos que irão pronunciar. O Secretário-Geral gostaria que se falasse sobretudo de paz, da crise alimentar que aflige várias regiões do globo, das alterações climáticas, do impacto da pandemia da COVID-19 nos países mais pobres e da educação dos jovens. Mas esta é uma rentrée muito especial, com uma guerra a decorrer no "primeiro mundo" -- algo impensável há uns meses, quando se associava conflito a ausência de desenvolvimento, ou seja, quando andávamos todos iludidos com teorias que guerras eram coisas de gente pobre e residente em horizontes longínquos.
Na verdade, não se deveria falar de recomeço do ano político. Este foi um verão sem tréguas de espécie alguma. As crises e as incertezas aumentaram e, simultaneamente, mostraram-nos que os líderes que pesam na cena internacional não conseguem apresentar propostas razoáveis e convincentes. A confusão causada pela política aventureira e ilegal de Vladimir Putin é um exemplo disso. Iremos para a Assembleia Geral após quase sete meses de agressão armada contra um estado soberano, nosso vizinho na Europa, e será quase certo que não ouviremos nenhuma proposta que seja capaz de responder a esse imenso desafio. Os principais dirigentes europeus, a começar por Emmanuel Macron, andam a deambular num labirinto político. Sabem que não se pode deixar o Kremlin ganhar esta guerra. Isso seria como dar um prémio aos autocratas e aos governantes fora-da-lei, e um convite a novas violações da ordem internacional. Também sabem que a assistência à Ucrânia poderá não ser suficiente, por muito que repitam o contrário nas suas intervenções públicas, e que sem esse apoio não haverá Ucrânia. Mas não tiram a conclusão que se impõe: é crucial passar a uma fase superior, a uma resposta ainda mais completa, que leve ao fim da agressão e a uma mudança da política externa da Rússia.
Neste contexto, que só não é visto como preocupante por quem anda a jogar aos faz-de-conta políticos ou a preparar a próxima ida a banhos, o grupo de antigos quadros da ONU que em abril escreveu uma carta aberta a António Guterres, preparou agora um segundo apelo público. Nas vésperas da Assembleia Geral, o grupo, no qual me incluo, volta a insistir na necessidade de se propor iniciativas políticas, que congelem as hostilidades e tornem possível o início de um processo que conduza à paz. Os acordos sobre a exportação de cereais e a inspeção da central nuclear de Zaporíjia devem ser explorados politicamente. A proposta agora apresentada por Guterres ao Conselho de Segurança, relativa à desmilitarização da central de Zaporíjia, é um bom ponto de partida e deve ser fortemente apoiada.
Reconheço que um apelo deste tipo é muito inspirado numa visão idealista das relações internacionais. Seria, porém, um erro pôr o idealismo e os princípios de parte. Mas a nova tomada de posição também se baseia numa constatação bem realista: numa guerra, nestes tempos de interdependência global e de altas tecnologias, todos perdem, e muito. Mais ainda, quando a ameaça vem de uma superpotência e gera, por isso, respostas de grande envergadura, por parte dos poderes rivais. Os autores da Carta das Nações Unidas já assim pensavam, em 1945. E o nosso planeta está hoje bem mais frágil do que estava há 77 anos.
É altura de se ser franco e direto. A agressão coloca-nos perante três opções e pede-nos uma decisão firme e clara. Uma solução inspirada na técnica do banho-maria não resulta. Na realidade, com o tempo, acaba por encorajar o infrator e outros com intentos semelhantes. Aqui, ou se acende o lume ao máximo - na convicção de que no final se estará do lado dos vencedores e dos sobreviventes - ou se procura uma receita alternativa, uma via política. É essa a escolha determinante que os nossos líderes têm de fazer.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU