Uma portugalidade universal
Desde que em 1952 cantou pela primeira vez nos Estados Unidos, no La Vie en Rose, um dos clubes noturnos mais elegantes de Nova Iorque, Amália conquistou de imediato o público norte-americano. E esse sucesso renovar-se-ia sempre que voltou a apresentar-se naquele país, em particular quando, nas duas décadas seguintes, triunfou em algumas das salas americanas de maior prestígio mundial, do Hollywood Bowl de Los Angeles ao Lincoln Center ou ao Carnegie Hall de Nova Iorque.
No que respeita à escolha do repertório, no caso da América, Amália seguiu, em geral, o mesmo modelo que adotava nos demais países: uma combinação livre de fados tradicionais, dos fados-canção que Frederico Valério lhe escrevera para o teatro na década de 1940, de cantigas das músicas tradicionais rurais portuguesas e das canções em várias línguas que ia aprendendo ao longo das suas viagens, incluindo, neste caso, alguns sucessos da Broadway e de Hollywood, no inglês original.
Em 1965 Amália gravou nos estúdios de Paço d’Arcos da Valentim de Carvalho dois LP com um repertório que contrastava abertamente com a sua discografia anterior. O primeiro era um álbum intitulado Amália Canta Portugal, preenchido por 12 canções tradicionais portuguesas em versões orquestradas por Joaquim Luís Gomes. Mais tarde viria a gravar outros dois discos com o mesmo título, um deles ainda com orquestra, em 1967, o outro só com guitarras, já em 1972. Os três álbuns reuniam uma seleção de cantigas das tradições musicais rural de norte a sul do país, algumas extraídas das recolhas folclóricas de Alexandre Rey Colaço e outros etnógrafos, outras sugeridas por Hugo Ribeiro, o técnico de som que habitualmente fazia as gravações de Amália, outras ainda extraídas das suas memórias de infância, quando as ouvia à mãe e às tias, tanto na casa de Lisboa como nas suas estadias na Beira Baixa, de onde a família tinha emigrado para a capital.
Quando em 1966 foi convidada pelo maestro André Kostelanetz para ser a solista em dois grandes concertos sinfónicos, o primeiro com a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque e o segundo com a de Los Angeles, a disponibilidade das orquestrações de Joaquim Luís Gomes permitiu-lhe dedicar, em ambos os casos, a primeira parte do programa precisamente a estas cantigas em versão orquestral, sendo a segunda parte reservada para uma seleção de fados acompanhados pelo Conjunto de Guitarras de Raul Nery. O sucesso, junto do público e da crítica, foi esmagador.
O segundo álbum de 1965, que viria a receber o título Amália na Broadway e acabaria por ser editado apenas em 1984, tinha também ele um caráter surpreendente. Com direção e orquestrações do maestro inglês Norrie Paramour, Amália interpretava algumas das suas canções favoritas do chamado Great American Songbook - o nome que nos Estados Unidos se dá aos títulos mais consagrados nos palcos da Broadway e nos estúdios de Hollywood.
Seria o caso de duas obras de Jerome Kern (All the Things You Are, com letra de Oscar Hammerstein II, e Long Ago and Far Away, com poema de Ira Gershwin), de The Nearness of You, de Hoaggy Carmichael, de I Can’t Begin to Tell You, de James Monaco e Mack Gordon, e de dois títulos particularmente emblemáticos, o Blue Moon de Richard Rodgers e Lorenz Hart, e o Summertime, da ópera Porgy and Bess de George e Ira Gershwin.
A este repertório americano juntavam-se três peças portuguesas: dois fados-canção de Frederico Valério, o Ai, Mouraria, que o compositor escrevera para ela em 1945, no Rio de Janeiro, e Amália, uma das suas primeiras gravações lisboetas de 1951-52, e ainda Solidão, a nova versão da Canção do Mar, de Ferrer Trindade, com uma letra de David Mourão-Ferreira especialmente escrita para o filme Les Amants du Tage, de 1955.
Amália gostava de dizer que cantava “tudo o que lhe sabia a Fado”, e na realidade percebe-se em todo o seu legado gravado uma vocalidade, uma expressão emocional e uma entrega intrinsecamente fadistas que unificam, num mesmo registo, repertórios de origens dispersas, reunidos apenas por uma escolha pessoal sem outro critério fixo que não o do gosto e da intuição. Mas, por outro lado, quase que contraditoriamente, Amália tinha uma facilidade quase camaleónica para captar sotaques e traços interpretativos próprios de cada língua e de cada tradição lírica que visitava, à medida que a sua carreira lhe ia permitindo descobrir outros mundos, outros povos e outras culturas.
Este programa, feito das cantigas tradicionais portuguesas que cantou com algumas das maiores orquestras dos Estados Unidos e das canções norte-americanas que decidiu gravar com uma orquestra portuguesa, é, por conseguinte, uma homenagem às pontes de afeto profundo que soube construir com a América, afirmando, também aqui, a sua condição única de expoente de uma portugalidade universal que parece dar corpo à célebre definição de Miguel Torga: “O universal é o local sem paredes.”