Uma noite com o Presidente: O mundo e Portugal segundo Marcelo
Quatro horas com o Presidente de um país europeu ativo é uma experiência pirotécnica: considerações sobre o restabelecimento do serviço militar, o aumento da imigração e emigração, a sua passada coabitação com o antigo primeiro-ministro socialista António Costa, detalhes íntimos sobre a sua própria família “espalhada pelo mundo” e previsões sobre o que acontecerá nos grandes conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente.
O olhar de um estrangeiro capta pérolas de sabedoria diferentes das dos seus colegas portugueses e por isso estas impressões são destilações necessárias por um olhar estrangeiro.
1 – Marcelo espera que Portugal tenha um lugar importante na mesa europeia com o seu velho amigo Costa, que tem nove anos de experiência como primeiro-ministro e está na corrida ao cargo de Presidente do Conselho Europeu.
Será o antigo primeiro-ministro italiano e antigo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, um rival de Costa? “Draghi é extraordinariamente inteligente e conheci muitos líderes inteligentes na minha carreira, como a Rainha Isabel II e Fidel Castro, mas os europeus podem rejeitá-lo, tal como os italianos acabaram por se cansar.
2 – Comparando os estilos de Costa e Montenegro como primeiro-ministro, definiu as diferenças de cada um: Costa tem uma visão “asiática” estudando todas as questões de vários ângulos e chegando a um consenso para uma decisão. Montenegro, que está no cargo há apenas algumas semanas, é “sigiloso e deliberado” e “faz-me trabalhar mais por causa das suas surpresas”. Marcelo ficou surpreendido com o facto de Montenegro ter nomeado muitas figuras não políticas para o seu governo e anunciado um jovem cabeça de lista para as eleições europeias de Junho varrendo alguns dos da velha guarda.
3 – No atual campo de batalha da crise mundial da Ucrânia e do Médio Oriente, deverá Portugal restabelecer o serviço cívico ou o recrutamento como muitos países europeus estão a fazer? Não, diz Marcelo. As forças armadas nacionais, no entanto, deveriam ser reforçadas através de investimentos adicionais de forma massiva, para criar incentivos para as pessoas se juntarem à Marinha, ao Exército e à Força Aérea, na tradição do antigo e vasto império mundial de Portugal.
4 – Os líderes políticos mundiais estão fora de sintonia com o novo mundo digital, mesmo em Portugal. O imediatismo das plataformas sociais foi adotado pela direita, como aconteceu em França, Alemanha, Holanda, Espanha, etc. e os partidos tradicionais estão fora do alcance, o que explica os rápidos ganhos da direita, incluindo em Portugal, diz Marcelo. Mesmo os sindicatos são incapazes de chegar, por exemplo, a 700 000 trabalhadores de vários países e origens em Portugal que não têm representação sindical.
5 – Marcelo prevê que os países acabem por se cansar da onda de populismo de direita. Ele diz que Portugal é abençoado pela imigração mista que veio em várias ondas. Atualmente, brasileiros, angolanos e moçambicanos do antigo império colonial português, britânicos, franceses e italianos e até americanos estão a chegar em maior número para se estabelecerem. No entanto, a comunidade muçulmana ainda está num nível baixo, são entre 30 000 e 40 000. Isto difere marcadamente de outros países da Europa onde as crises eclodem por razões religiosas.
Quando questionado sobre o regresso de judeus sefarditas ou outros como Roman Abramovich (um judeu asquenaze?), ele responde: “Eu não conheço esse homem, exceto como dono de uma equipa de futebol e nunca o vi. No entanto, sei que a comunidade judaica do Porto tinha uma lista de 30 000 pessoas e os representantes da comunidade pediram para me ver e eu recusei. Tínhamos de pôr fim a estes abusos das leis do ‘direito de regresso’ das vítimas da inquisição portuguesa há cinco séculos.’’
6 – Família de Marcelo: uma informação interessante é que Marcelo é filho de um ex-ministro do Ultramar que fugiu para o exílio no Brasil após a Revolução dos Cravos de 1974 que derrubou o governo de Marcelo Caetano, sucessor de Salazar. Marcelo e os seus irmãos dividiram-se em três linhas políticas diferentes e a divisão persiste nos seus netos numa base geográfica. Todos eles moram no estrangeiro. As relações amargas com o seu filho que vive no Brasil criaram uma cisão devido a um escândalo relativo à influência exercida num caso de tratamento médico de bebés gémeas brasileiras que o seu filho recomendou que tivesse prioridade para receberem um remédio caro em Lisboa.
Marcelo esteve na cena política em Portugal como comentador, colunista, político e finalmente como Presidente. O seu mandato termina em 2026. Diz que os seus planos são nunca mais falar de política depois disso (devemos acreditar?) e considera ensinar história e política a crianças portuguesas em idade escolar. Ele também aspira a ir para uma universidade americana na sua Califórnia predileta, com um cargo de professor. Também prefere locais tão distantes para lecionar como Cabo Verde ou São Tomé porque são países que visitou com frequência desde criança e cuja cultura lhe diz muito.