Uma história de violência
A história de todas nós - todas, filhas, alunas, trabalhadoras, amantes, mães, irmãs - é uma história de violência." A frase é de Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora, num post no Facebook. Alexandra fala, obviamente, a propósito das recentes denúncias públicas de casos de assédio, violência doméstica e violências outras em Portugal, inserindo-as naquilo que ela descreve como um continuum - a violência a que as mulheres são sujeitas, conformadas, habituadas.
Calhou que na véspera de ler esse post da Alexandra tivesse conversado com um amigo que me ligou a propósito do #metoo e lhe tivesse dito isso mesmo: que somos educadas para suportar violência, para a aceitar, para não reagir ou fugir. "Não respondas que é pior" é uma frase que a maioria de nós ouviu repetidamente, como o "mulher honesta não tem ouvidos". São conselhos dados às meninas para evitarem pôr-se em risco - o risco, desde logo, de se magoarem, mas também de se desfearem e embrutecerem (e, portanto, perderem o "valor"), como aos meninos é dito para não se ficarem nunca, para não aceitarem desaforos, para reagirem com violência à violência e, caso ganhem alguma cicatriz ou aleijão no processo, os exibirem com orgulho.
São generalizações? Claro. E claro que a violência não se exerce só sobre as mulheres e não tem como origem só os homens; não deveria ser necessário dizer isso, como não deveria ser necessário frisar que não basta acusar para provar, nem ser uma mulher a dizer para ser verdade.
É preciso, porém, consciencializar o arquétipo da dominação masculina, tanto tempo tomado como naturalidade - a ponto de se tratarem como aberrantes os desvios a essa "natureza"- e que não é uma coisa do passado: está aqui, à nossa volta e em nós, bem vivo e virulento.
Tomarmos consciência de algo em que sempre vivemos imersas e imersos é muito difícil. E é tão ou mais difícil para os alvos da violência como para os que, no sentido em que ela os transforma em dominantes, dela beneficiam. Um homem pode achar que nunca foi violento com uma mulher, mas terá sempre sido parte da violência machista que sobre ela se exerce no sentido em que beneficiou do ascendente, do domínio, da domesticação, dos estereótipos; uma mulher pode achar que nunca foi vítima, mas não teve sequer hipótese de o não ser. É assim com todas as superestruturas de poder socialmente construídas - não precisamos de ser cúmplices e fautores conscientes para sermos cúmplices e fautores.
Daí que quando uma mulher diz "nunca fui assediada" ou "nunca fui alvo de violência machista" eu sorria. Porque tenho a certeza de que foi. Tenho, aliás, a certeza de que mesmo as que de nós consciencializaram há muito essa violência ainda têm muitos episódios para reconhecer. Porque essa consciencialização é muito dolorosa - a de que a violência e a dominação machista estiveram sempre presentes na nossa vida e que pessoas de quem gostámos ou gostamos a exerceram sobre nós. E nós permitimos. É muito difícil aceitar que se foi, que se é vítima. Faz-nos sentir fracas, menos válidas, menos nós. É até vergonhoso.
E envenena tudo, sim - mas esse veneno esteve sempre lá; não é, ao contrário do que se tenderá a pensar, o falar-se dele, o denunciá-lo, que o torna real. Dizer #metoo, "eu também", é aceitar essa realidade e ser capaz de fazer alguma coisa com ela. Aceitar que essa violência esteve sempre presente é aceitar que fizemos e fazemos todos parte do problema e que a única forma de lidar com isto é falar, entendermo-nos, mesmo que isso passe por nos zangarmos. E precisamos mesmo de nos zangar. Como disse Mandela em relação ao apartheid, estivemos anos a bater educadamente à porta, e a porta não abriu. É a altura da raiva.
Jornalista.