Uma família inglesa

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Um país pequeno, como o nosso, não tem necessariamente de ser pobre, submisso, estar acocorado, ajoelhado ou dobrado perante as grandes potências.

Um país pequeno não tem de ser a criadagem da Europa rica, ser subserviente diante dos mais poderosos nem bajulador dos mais fortes. A dignidade de um povo, quando a tem, não se mede pelo número de habitantes, pela quantidade de quilómetros quadrados ou pelo PIB per capita.

A mais antiga aliança militar da Europa, tantas vezes apregoada, quando dá jeito à diplomacia ou às visitas de Estado, nunca nos trouxe nada de bom. Quando, de facto, houve um conflito que poria em causa a tal aliança, que remonta a tempos medievais, adivinhem quem ganhou? O mais forte, o mais poderoso, o parceiro rico da aliança desigual.
O Mapa Cor-de-Rosa punha em conflito uma visão colonialista do Cairo ao Cabo, contra outra, de Luanda a Maputo.

"Eles" ficaram com o corredor de norte para sul e nós não conseguimos o de oeste para leste. Perdemos. Como sempre. Nem A Portuguesa, hino marcial de apelo à revolta contra os "bretões", foi suficiente para tentar, sequer, disputar a batalha. Mais tarde, em nome da tal aliança, foram-se os "bretões" e ficaram os "canhões". Mas, n'A Portuguesa, a génese de uma marcha de revolta em papel, ficou lá.

Eles levaram o Douro e nós deixámos. Ficaram com as vinhas, e as uvas, e o vinho, e o rio, e o comércio, e a feitoria e tudo o mais. Ainda hoje, são as famílias inglesas que dominam o melhor vinho do mundo e deixam-nos o orgulho, a paisagem e pouco mais, além das tarefas manuais de plantar, colher, pisar, engarrafar. Eles vendem. Nós bebemos. E parecemos felizes por nos deixarem participar no processo do vinho. Que podia ser nosso, mas que é quase todo deles.

Noutras eras, exportámos para lá criadagem, pedreiros e serventes, porteiras e empregados de mesa; nesta era, exportamos enfermeiros e médicos, engenheiros e outros profissionais, cheios de saber. Porque não os conseguimos reter e, porque, mais uma vez, estamos mais felizes a servir do que a sermos servidos. É a nossa vocação de serventes, de criados, de sentimento de inferioridade diante dos poderosos. Como se todos os povos fossem melhores do que nós, só porque "são de fora".

Até a imagem, que correu mundo, do enfermeiro português que tratou o primeiro-ministro não deixa de ser patética: olha, que curioso, um tipo que podia estar a servir copos em Albufeira é, afinal, um profissional com autorização para tratar Sir Boris.

E, diante de tudo isto, o governo, intérprete da nossa pequenez e habitual subserviência, diz muito pouco. Barafusta cá dentro, mas não manda regressar o embaixador a Lisboa, não chama o embaixador acreditado em Lisboa às Necessidades, não dá um sinal diplomático firme. Não faz valer os símbolos tidos como forma de protesto no complexo mundo da diplomacia, para dar um sinal de desagrado, de protesto, de incómodo. Prefere "deixar os canais de diálogo abertos" e tentar "convencer" o Reino Unido de que Portugal está seguro. Mais uma vez, prefere acocorar-se, esperar que das terras de sua majestade venha uma decisão magnânima de voltar a incluir Portugal na lista verde e de podermos, como sempre, receber hordas de britânicos que enchem os hotéis do Algarve, e não só, que deixam euros mas nada mais e que fazem de nós os criados ao serviço dos súbditos de sua majestade.

Ser pequeno não quer dizer ser pobre, subserviente, acocorado, ajoelhado. Às vezes, um pingo de dignidade de um Estado e de um povo não fazia mal nenhum. Mas, à nossa moda, sempre gostámos de uma família inglesa.

Jornalista

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