Uma crónica sobre nada
Estou a preparar um colóquio em que irei intervir, mas a minha mente fixa-se em todas as coisas que nada, ou o menos possível, tenham que ver com o tema do colóquio. Pego por momentos num novo livro de poesia, mas como falar desse livro sem falar verdadeiramente dele, se apenas consigo falar de mim? As notícias do país e do mundo são tentação a que não quero ceder, deixo aos comentadores esse sábio ofício de glosar e interpretar. Cheguei a um momento (ou a um bloqueio, se quiserem) em que só consigo falar de mim, mas para um tão exaltante exercício faz falta alguma coisa, pessoa, animal, ação, qualidade ou estado que se confronte comigo, que roube a minha atenção sem roubar o meu juízo.
Por exemplo: houve um poeta no século XIII, o Duque da Aquitânia, Guilherme IX, o primeiro poeta a escrever na “langue d’oc”, que criou um “poema do puro nada”, proclamando: “Ferai un vers sur rien/ Ni sera sur moi ni autres gens/ Ne sera sur amour ni sur jeunesse/ Ni sur autre chose:/ Je l’ai trouvé en dormant/ Sur mon cheval”. Ora eu desejaria, não sendo príncipe de coisa nenhuma e não tendo cavalo para montar, ser capaz de escrever isso mesmo de que a poesia é capaz. desde há muito tempo: uma crónica sobre nada.
Flaubert desejou também poder escrever um romance sobre nada, uma obra em que personagens, enredos, narrativas desaparecessem ante o puro agenciamento das palavras e das frases. Ele escreveu assim a Louise Colet (com as minhas desculpas, vai no original, não há versão inglesa): “Ce que je voudrais faire c’est un livre sur rien, un livre sans attache extérieure, qui se tiendrait de lui-même par la force interne de son style, comme la terre sans être soutenue se tient en l’air”. Ora era mesmo uma crónica sem assunto que eu desejaria hoje escrever.
Os grandes mestres do género crónica na nossa língua são (concordarão comigo) os brasileiros. Mas nem em Rubem Braga, nem em Nelson Rodrigues eu encontrei uma crónica verdadeiramente sobre nada. A grande arte dos cronistas brasileiros reside em pegar no mais anódino e no menos notável elemento da realidade, para, a partir daí, erguer triunfalmente uma magnífica crónica. Eles são muito bons nisso, em escrever à beira do nada.
É que o nada não se encontra, por si mesmo, em estado puro. Ele mistura-se com a nossa vida, com os nossos pensamentos e sentimentos, com as nossas (ai de nós!) escritas, de modo a, por infiltração e corrosão, realizar aquilo a que ousarei chamar a “nadificação” (“néantisation” era mais bonito, mas basta de escrever numa língua que muitos leitores não conhecem!). O nada, para poder ser escrito, tem de ter o seu ponto de partida em alguma coisa que fuja ao nada. Quando Sartre escreveu O Ser e o Nada, até os modos e maneiras dos empregados de café franceses lhe serviram de tema.
Aqui presto homenagem aos mestres, o da poesia por colher a inspiração numa soneca sobre o seu cavalo, o do romance por congeminar coisas tão inteligentes nas cartas à sua amante, o da filosofia por saber filosofar a partir do real mais quotidiano e, finalmente, aos grandes mestres brasileiros, a quem devemos as mais belas e incisivas crónicas em língua portuguesa.
Terei conseguido por fim escrever uma crónica sobre nada?
Diplomata e escritor