Um sobressalto cívico

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Ao falar de identidade e de património cultural, José Mattoso é exemplar ao apontar a recusa das simplificações, tantas vezes grotescas. “As tentativas para fazer coincidir os Estados com áreas culturais resultaram normalmente de ideologias totalitárias”. Além disso, a “tendencial redução da produção cultural a um centro único tem como consequência perversa o atrofiamento do dinamismo e da criatividade do todo nacional”. Hoje, a nossa História passou “a poder narrar um passado real, com ganhos e perdas, com avanços e recuos, fidelidades e traições, sucessos e insucessos, unanimidades e contradições; e apesar de tudo como um passado constitutivo da coesão nacional, pelo simples facto de ser um passado comum e de resultar de uma experiência vivida em conjunto ou tornada memória coletiva”. Infelizmente, a ignorância histórica vai sendo cultivada, pela repetição de inverdades, que escondem preguiça e oportunismo. Um povo de Finisterra, como o nosso, caracteriza-se por ser um cadinho de influências. Não nos podemos esquecer da nossa saga de emigrantes pelo mundo, enquanto fomos terra de acolhimento. Só a ignorância pode deixar-nos arrastar por mistificações que apenas conduzem a uma esquizofrenia ciclotímica que impede a perspetiva positiva sobre as tarefas do presente. Não podemos construir uma sociedade que recusa a diversidade e a abertura.

E destaco os cinquenta anos da independência de Cabo Verde ocorridos no passado dia 5. A revista “Claridade, de Baltazar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Aurélio Gonçalves, publicada em S. Vicente, entre 1936 e 1960, por entre dificuldades e vicissitudes, continua a ser uma marca essencial. O programa, segundo Manuel Lopes (1907-2005), era “fincar os pés na terra cabo-verdiana”, tendo influência muito significativa no sentido de uma autêntica impregnação cívica e na procura das raízes mais fundas da cultura cabo-verdiana - “em contacto com a terra os pés se transformaram em raízes e as raízes se embeberiam no húmus autêntico das nossas ilhas”. Aí esteve a modernidade crioula, ligada ao que era próprio e genuíno e ao que era universal na busca da emancipação… “Você Brasil, é parecido com a minha terra. / As secas do Ceará são nossas estiagens, / com a mesma intensidade de dramas e renúncias” - disse Jorge Barbosa. E se falamos de identidade crioula, não podemos esquecer a raiz etimológica da palavra que tem a ver com um permanente ato de criação. Com emoção, acompanhamos o percurso de Amílcar Cabral e o seu amor pela língua portuguesa, numa dinâmica insular, atlântica, universalista. Ao relermos o romance Chiquinho, de Baltazar Lopes, cuja recente reedição foi um sucesso editorial, encontramos o símbolo literário de um povo e de uma cultura, sob a evocação da generosa “morabeza”. Leia-se A Construção da Identidade Nacional - Análise da Imprensa entre 1877 e 1975 (Praia, 2006) de Manuel Brito-Semedo. Num tempo de debate sobre as questões na nacionalidade. Precisamos da lição da experiência e do conhecimento. Perceba-se que a Constituição da República tem de ser um fator de confiança e coesão. Só se preserva e defende o património cultural partindo da diversidade e da tradição. Uma nação antiga protege-se salvaguardando a identidade e a diferença. Não esqueçamos a memória viva de um povo que sempre soube ultrapassar os gritos do momento e as tentativas de fazer prevalecer as lógicas unilaterais do tempo. Não se corra atrás do imediato.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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