Um simples pedido de fiscalização da constitucionalidade

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O Presidente da República decidiu pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade das alterações propostas à Lei de Estrangeiros. Pelos comentários que tenho visto, parece coisa inédita, e que revela um profundo viés ideológico. Esquece-se das muitas dezenas de vezes que o mesmo sucedeu, incluindo em plena austeridade, relativamente a questões de não menor sensibilidade política. Depois, ouvimos dezenas de pessoas a comentar tal feito, expressando coisas como “o TC não pode desautorizar o Presidente da República”. Quem fala assim, não sabe absolutamente NADA sobre o equilíbrio de poderes num Estado de Direito – já nem digo sobre o sistema de fiscalização da constitucionalidade. Mas também não considero adequada a pressão para o outro lado, a de que o TC tem de ter em atenção o estado de urgência calamitosa da imigração. Esse argumento foi usado e abusado durante os anos de austeridade ou em matéria de acesso a metadados: havia que ter em conta “o estado calamitoso das contas públicas”, ou “a ameaça calamitosa do terrorismo”. Em ambos os casos, o TC soube atentar apenas ao seu papel de guardião da Constituição.  

Já escrevi muito sobre o estado imigração. Concordo que se fizeram opções lamentáveis no passado. Ora, há matérias em relação às quais o legislador é inteiramente livre: revogar a manifestação de interesse ou o visto de procura de trabalho, por exemplo. Eu não concordo com o último, mas isso não o torna inconstitucional. Trabalhei oito anos no TC, e todos os dias temos de extrair da nossa cabeça as nossas opiniões relativas às medidas do Governo e atentar apenas a isto: a Constituição permite ou não tais medidas, gostemos muito delas ou não? É um juízo seco, desprovido de emoção, de juízos de oportunidade, e muito mais técnico do que se pensa.  

Significa isso que o TC pode julgar inconstitucionais medidas que são absolutamente necessárias? Sim, se elas violarem a Constituição. Mas a necessidade da medida é também ponderada, através de um juízo de proporcionalidade. Grosso modo, as coisas passam-se assim: primeiro, há que ver se as medidas em causa restringem um direito fundamental. Depois, analisa-se se as medidas que limitam tal direito são mesmo necessárias: estamos, mesmo, perante um “estado calamitoso a nível de imigração”? Haveria outras medidas possíveis? A restrição que fazem é proporcional? É assim, um juízo muito ponderado, por etapas, e não um genérico “concorda-se ou não”. Mais uma vez: o que os juízes pensam não é para ali chamado. 

Mas então, dizem alguns, se as medidas necessárias violam a Constituição, altere-se a Constituição! Mais uma santa ignorância. Uma eventual inconstitucionalidade desta vez diria respeito ao direito fundamental à família. Por um lado, os direitos, liberdades e garantias, não podem ser revistos. E depois, revogava-se o quê? O direito fundamental de os filhos viverem com os pais? Se o TC achar que as medidas do governo incidem desproporcionalmente sobre esse direito, devemos então defenestrá-lo dos nossos princípios basilares? … Já nem falo dos perigos de se apelar a uma mudança da Constituição ao sabor das conjunturas e das necessidades. É que a Constituição serve precisamente para isto: ser a referência última dos nossos princípios inegociáveis, daquilo que queremos firme, mesmo nos períodos mais difíceis e de crise. É nessas alturas, e sobretudo, perante os direitos das minorias não representadas no Parlamento, que é necessária a Constituição e a sua garantia incondicional de que defenderá os princípios que nos qualificam como Estado de Direito, independentemente de quem esteja no Governo num dado momento. E eu quero viver num país assim.  

Professora da Faculdade de Direito da Universidadede Lisboa. Investigadora do LisbonPublic Law

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