Um livro de José Gil ou como enfrentar o neofascismo

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A Última Lição - José Gil (Contraponto), não é um simples livro de entrevistas. Marta Pais de Oliveira (1990) soube construir um livro que, na sua organização triádica é, em bom rigor, uma espécie de portulano do pensamento vivo de um professor, que é, na boa senda de uma docência hoje em crise, um ensaísta e um filósofo que se caracteriza pela heterodoxia.

José Gil nasceu em Muécate, Moçambique, e deve à questão do espaço a definição mesma do que viria a ser a sua intervenção quer como professor de liceu e depois universitário, quer como agudo analista da vida social portuguesa. Na definição gramsciana José Gil é bem esse “intelectual orgânico” para quem o questionamento do pensar não se dissocia jamais do pensar sobre a realidade social e os modos moventes (e movediços) como entre a realidade e o real há mais do que uma distinção semântica a destrinçar. José Gil, neste livro que pouco mais de 150 páginas, vai sendo questionado pela entrevistada quanto aos eixos como a sua visão de mundo se foi construindo em função dos seguintes eixos: o espaço, o tempo e o corpo.

Gil é uma dessa raras personalidades que, em face da pretensão colonialista, em face da brutalização dos regimes neofascistas hoje em franca expansão, identifica a camada invisível que ao intelectual orgânico cabe descortinar: os discursos, as linguagens que existem dentro da linguagem oficial. Analisar, pois, o que, por dentro ou por detrás das palavras trocadas entre humanos é a da ordem do poder ou da opressão, da resistência e da liberdade, eis um eixo de sentido destas conversas. Neste livro Gil define-se, desde a infância, como alguém que se viu sempre como sujeito de um incodificável. Melhor: sujeito profundamente marcado por essa violência da metrópole - o regime fascista de Salazar - sobre outra linguagem ainda: a do corpo. Não sendo uma lição no sentido literal que um leitor possa atribuir a este título, o que vamos lendo nestas páginas é um pensamento em rizoma, um pensamento em expansão que, pela anamnese, se faz voz que viaja ao passado, presentificando-o e articulando-o com o nosso presente. Teses de vida, não lições, isso o leitor encontrará. Frases que são pontos luminosos ao longo da conversa: “Nunca quis poder”; “A vida não tem que ter sentido, ela é sentido.”, eis dois postulados. A especificidade filosófica gileana tem que ver com a fidelidade a uma energia vital, jamais corrompida: a liberdade que, desde a infância, brincando com as crianças negras em Quelimane, José Gil soube preservar, ou aprofundar, ao ponto de, já depois de estudar no Liceu Salazar, e sendo, com o seu regresso a Lisboa, aos 17 anos, aluno do Liceu Camões, ou, depois, aluno em Paris - onde frequentou os seminário de Derrida e de Deleuze, ou foi por dentro o pensamento de jankélévitch e de Polimento e de Jean Wahl - essa liberdade se corporizar (ou concretizar) em experiências do pensamento que não se desvincularam da própria experiência corpórea. Uma experiência ancorada naquilo que em Rafael Argullol é um “pensamento nómada”, ou em Deleuze uma defesa da alegria como resposta - nos corpos e na linguagem - contra o pensamento totalitário.

É nesta perspectiva que se pode compreender o alcance deste livro. Atravessamos uma época definidora do futuro. A Europa encontra-se entre Cila e Caribdis: de um lado o pensamento fascista de Trump e a incapacidade dos líderes europeus em fazerem frente a esse pensamento turístico, empreendedor da moda e da morte. Gil é veemente no diagnóstico: jamais o pensamento fascista será verdadeiramente um pensamento. É antes - e é essa a sua arma - uma “berraria”, um dinamitar da própria argumentação que impede, bloqueia a apresentação clara dos fins políticos. Igualmente essa “berraria” é o que define a acção de André Ventura que tem a seu favor a anemia das esquerdas. Ou, tão-só, a anemia do humanismo, hoje uma palavra que se diluiu na miríade dos discursos da comunicação social, a qual, diz Gil, sequestrou a força vital, a energia da utopia, formatando tudo e tudo medindo pela régua da mediocridade triunfante. É contra o império da opinião que o autor de Portugal Hoje, o Medo de Existir (2005) chega a determinados pontos de ruptura que - assim houvesse deputados que o lessem e o compreendessem - podem bem ser da mais urgente praxis política. Faz-nos falta, sentencia José Gil, a força vital, a força que é determinada pelo amor à vida para combatermos e vencermos o neofascismo.

É uma luta titânica entre Eros e Thanatos o que estamos vivendo hoje. A única arma que o neofascismo usa é, diz o filósofo, a energia e o fascínio da morte. A morte da linguagem, a sua corrupção, a superficialidade do comentarista político, a cobardia de imensos deputados, perfeitamente incapazes de responder com a veemência da força da liberdade contra a corrupção da democracia que Ventura e os movimentos que o apoiam representam, isso está de acordo com a matriz existencial a que José Gil sempre obedeceu: tornar-se aquilo que estava prometido ser. É uma frase de Nietzsche: “Torna-te aquilo que és.”, é um imperativo mais que categórico, uma injunção existencial que Gil, no fundo, estende a todos os que o leiam. Portugal, que tem ainda diversos e profundos sintomas de fascismo numa sociedade que, actualmente, se bestializa, é um país onde urge cada um compreender a sua singularidade. É uma das ideias-força deste livro onde a conversa flui, natural, humana: a distinção entre identidade e singularidade. O livro Portugal Hoje é um estudo sobre as mentalidades, não uma reiteração das tese de Eduardo Lourenço sobre o que somos.

Filho da Córsega, onde viveu depois do Maio de 68, quem é José Gil? É alguém que nos vê sempre de fora e que identifica a capacidade portuguesa de nos “outrarmos”. Esse devir-outro é o que pode, no fundo, como o prova o 25 de Abril e a potência que esse tempo deixou em aberto, dar sentido ao país. A singularidade, é essa a descoberta a fazermos durante a vida. Tal não dispensa o acaso, a magia, cenas vivas de um percurso onde os ritos de passagem, a dimensão mítica do humano e a consciência de que pensar é viver e viver é ser corpo no tempo e no espaço - ou nos espaços - o que define este pensador maior europeu. Dito de outro modo - e convém que tal seja dito neste tempo de tanta traição à vida, à democracia e à liberdade - é a profunda energia vital o que move os afectos, a ética do afecto, de alguém que, precisamente por afirmar “nunca quis o poder” faz de viver um pensamento que não quebra perante os monstros e não recua na coragem de cortar, cerce, a energia da morte - essa que numa Europa decapitada e num país que não sabe já quem é, só em face da catástrofe ecológica poderá vir a ter um fim. Mas não catastrofismo aqui. Aqui há esperança: “tem de haver uma promessa de vida”. Vida - a palavra-chave nesta época da pós-verdade e do pós-humanismo… Energia vital de uma palavra que seja uma porta aberta a essa coragem que vem, em Gil, de Rimbaud e da Literatura, o outro lado da (sua) filosofia.

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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