Um homem da cultura: Luís Filipe Lindley Cintra

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O dia 18 de Março é uma dessas datas que, para a cultura portuguesa, devia constituir um momento de homenagem e de gratidão a um grande vulto da nossa contemporaneidade. A Academia Portuguesa das Ciências de Lisboa lembrou-o com uma sessão evocativa, igualmente transmitida via Zoom e de que participaram João Dionísio, Telmo Verdelho, Isabel Barros Dias e Maria Piandello. Refiro-me ao filólogo e linguista português Luís Filipe Lindley Cintra (1925-1991), Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa desde 1951, tendo-se licenciado, pela mesma instituição, em Filologia Românica e criado o Departamento de Linguística Geral e Românica.

Figura axial da Universidade, a Cintra, em 1975, se deveu a reforma do Centro de Estudos Filológicos, rebaptizado como Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Agraciado em 1983 com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade e em 1988 com o grau da Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública, Luís Filipe Lindley Cintra tem na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo, escrita em parceria com o linguista brasileiro Celso Cunha (1917-1989), uma das suas obras de referência; gramática por meio da qual tantas gerações de professores e investigadores nas áreas das literaturas e da linguística se formaram.

Há, do seu labor investigativo, outras obras de valor inestimável, como sejam a Edição Crítica da Crónica Geral de Espanha de 1344 (em três volumes, com chancela da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983) ou a sua dissertação de licenciatura, intitulada O Ritmo na Poesia de António Nobre. Esta tese está hoje disponível ao público também com o selo da IN-CM. É deste extraordinário trabalho de investigação sobre o ritmo e o verso em Nobre que quero falar hoje neste Directo à Leitura. Ao menos, não passará em claro a memória que devemos ao Professor Cintra e que, por estes dias, alunos seus na Faculdade de Letras, nos anos de 1960-1970, lembraram com gratidão e ternura.

Este livro a tese de licenciatura de Lindley Cintra sobre a poesia de António Nobre (1867-1900), constitui, como escreve Paula Morão no prefácio à edição de 2002, um objecto de enorme rigor e sensibilidade, escrito por um jovem de, então, 21 anos. Dissertação apresentada à Faculdade de Letras em 1946, logo um elemento essencial deve destacar-se: estudando todos os recursos da versificação no de António Nobre, o corpus estudado é o que compete à 2.ª edição, a de 1898, a definitiva, e não, como talvez fosse mais expectável, a edição de 92.

O leitor desculpará este pormenor, mas é que, nestes tempos que correm, é, sem dúvida importante, lembrar que um linguista - e dos maiores, como o veio a ser o autor de Estudos de Dialectologia Portuguesa (Sá da Costa, 1992, 2.ª ed.) - debruçou-se sobre questões de poética, isto é, interessou-se pela poesia.

Não é, evidentemente, caso único. Todavia, esse estudo revela uma personalidade fascinante (e fascinada) que, própria de um leitor cultíssimo, igualmente estabelece entre Nobre e outros poetas comparações inauditas, originais coordenadas de interpretação. Servem-lhe de fontes autores como Camões e Antero, mas sobretudo Eugénio de Castro (o de Oaristos, de 1890), para além de poetas franceses que Nobre leu e conhecia bem: Verlaine, Moréas, por exemplo. Como destaca Paula Morão: “O ensaio é um rigoroso e luminoso estudo que conserva quase intactas as qualidades da sua análise” (p.8), ainda que, por razões de época, possamos apontar aqui e ali algumas menos conseguidas observações, as quais jamais fazem claudicar o pensamento do Professor Cintra.

Em 1968, quando a celebração do centenário do nascimento do poeta tardo-romântico, Luís Filipe Lindley Cintra publicará na Brotéria um ensaio sobre a questão do decassílabo, reformulando teses de 46. Interessa-lhe ver o problema do alexandrino e do verso livre no . Afastando-se dos lugares-comuns que, entretanto, vieram sendo ditos e escritos sobre o poeta, a questão essencial é mesmo essa: estudar os processos através dos quais no livro maior do oitocentista se atinge uma libertação métrica, uma respiração poética audaz e que Cintra relaciona com o estudo da acentuação rítmica e com a rima, correlacionando versos curtos e longos, tipos de esquemas estróficos e esquemas de dialogismo nesse livro absolutamente ímpar da nossa história literária. As hipóteses de leitura decorrem da análise concreta da linguagem nobreana, daquilo que em concreto os poemas colocam ao leitor.

Há um pendor comparatista no método de Cintra que antecipa em décadas o que de melhor o comparatismo tem feito sobre a nossa poesia. De facto, servindo-se, por exemplo, do célebre Tratado de Versificação Portuguesa, de Amorim de Carvalho, o crivo do linguista que jamais desprezou - pelo contrário! - a literatura, é a um tempo versátil e apertado, estrito. É reveladora a lição sobre o processo de desjunqueirizar em Nobre; um processo, diz Cintra, que, na verdade, não se aplica à linguagem deste autor, posto que é a intuição que justifica que ele use um tipo de verso (o dodecassílabo de forma 4+4+4) que extravasa o modelo do alexandrino clássico (cf., p.81). Cintra abrindo as portas de António Nobre, o leitor de Hugo, de Baudelaire, dos simbolistas e decadentistas franceses. Um António Nobre cuja voz (pelo emprego do tritetrassílabo) se distingue da dos seus contemporâneos pelo uso singular do dodecassílabo, como se pode ler em poemas como “Carta a Manuel” ou “Males de Anto” (p.82).

Insisto em pedir desculpas ao leitor deste Directo à Leitura de hoje. É que estas questões de poética talvez não digam muito (ou não digam nada) a quem não estude, a quem não se interessa por poesia. Ou talvez, mesmo aos que gostam de poesia, estes e outros problemas técnicos não façam já qualquer sentido. Mas estou em crer que, para além desse Cintra dos seus 21 anos, para além do académico e linguista ímpar que foi, há a personalidade forte, corajosa na luta contra o fascismo (os ‘gorilas’ que enxameavam a Faculdade de Letras) e que muitos dos seus antigos alunos recordam por estes dias.

Em 1972, Luís Filipe Lindley Cintra pôs-se à frente dos jovens da universidade que eram violentados pelos esbirros do fascismo. Defendeu-os com uma coragem física que - assim me contaram Teresa Belo e outros que viveram esse tempo terrível -, afinal de contas, não estava em discordância com aquele exímio estudioso da língua que Cintra sempre foi.

Luís Filipe Lindley Cintra é um exemplo de cidadania. Um modelo de professor e de homem de cultura. Quem vier a comprar este seu ensaio sobre António Nobre fique sabendo de um dado: Ruy Belo leu com atenção o texto de 1968 saído na Brotéria. O verso longo no poeta “Toda a Terra” (1976) deve muito, na dicção oral e no rigor rítmico e rimático a Nobre, mas deve também muito a esse leitor que foi o Professor Cintra, que lhe mostrou António Nobre. Nobre o próprio Luís Filipe de Lindley Cintra - em todos os sentidos da sua plural personalidade.

Professor, poeta e crítico literário

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