Um Governo, um ministro, uma TAP e os dois padrões de decência
A TAP foi uma empresa na prática nacionalizada, em que se injetaram 3,2 milhares de milhões de euros de dinheiro público, que reduziu salários numa proporção entre 25% e 50% e que despediu 2900 trabalhadores. Foi uma opção exclusivamente do Governo, que entendeu que a TAP, e a TAP com uma dada dimensão, era decisiva de modo a incluir o parque de empresas públicas, apesar de quase tudo parecer indicar o contrário. Agora, o percurso que se segue é o mesmo percurso exótico de tantas outras realidades antes dela: o Estado salva da falência e injeta uma fortuna, assume os despedimentos e os seus custos, assume a redução da frota, das condições da operação, das participações noutras empresas, e prepara assim a venda próxima a um privado, que a recebe já servida numa bandeja de prata, sem as maçadas das dívidas e dos despedimentos e das exigências de empréstimos entre privados, a partir do momento em que os contribuintes portugueses garantem tudo o que é incómodo.
Isto faz lembrar alguma coisa? Talvez, na nossa história recente, alguns bancos, algumas seguradoras?
É este o magnífico resultado do cruzamento entre TAP, pandemia e Pedro Nuno Santos e de um Governo que, apesar de beneficiar de crescimento económico, emprego miserável, mas pleno, aumento da receita fiscal e financiamento adicional europeu num montante extraordinário, conseguirá deixar o País sem um aeroporto internacional que sirva adequadamente o turismo, a circulação dos nacionais pelo mundo e até, note-se o absurdo, a própria TAP que tão fundamental foi salvar.
A isto, junta-se apenas o cansaço de mandar, os maus hábitos que nisso se ganham, a dificuldade em recrutar gente que queira passar por isso ou até, mais imediatamente, receber ordens de outra gente em que não reconhece qualquer competência, sabedoria e até integridade.
500 mil euros é bastante dinheiro, mas já não sei se é o valor em si o essencial. O essencial, parece-me, é que, enquanto enfermeiros, professores do ensino básico, cirurgiões, juízes e tantos outros, lidam com dificuldades de centenas de euros, entende-se que há um grupo de funções ungidas, seja quem as ocupa bom, mau ou indiferente, em que a remuneração só pode ser acima de um dado patamar, inclusive no universo de entidades públicas.
Como pode um gestor de recursos humanos de uma empresa falida ganhar mais do que um primeiro-ministro? Dir-se-á: mas, numa situação de concorrência, o inverso ditaria sempre a incapacidade das empresas e reguladores públicos contratarem "os melhores", esse mantra do mérito que tem tanto de parolo como de estúpido. Ora que concorrência existe para uma TAP, a fazer e bastante mal, a meu ver, o que tantas outras empresas ao lado fazem, mas com a diferença fundamental de que a TAP foi previamente afogada em dinheiro público? Ou numa NAV, já agora, empresa pública que faz o que mais ninguém pode fazer e naturalmente sem concorrência?
E algo adicional evidencia que há manifestamente dois padrões de decência. Enquanto um diretor-geral da Administração Pública, sendo demitido sem justa causa, pode ser compensado financeiramente, mas com um valor que não ultrapasse a soma de 12 meses de salários e tendo de devolver essa compensação se entretanto for recrutado, por concurso, para um lugar de direção equivalente, pelos vistos nada disso se passa no universo das empresas públicas. Só assim se pode explicar que o mesmo "acionista Estado" - uma expressão que as empresas públicas gostam de usar para parecerem mais "chiques e alinhadas" -, contrate, despeça, pague meio milhão e contrate logo a seguir, sem que isso tenha qualquer consequência naquilo que são as compensações financeiras que os contribuintes assumem. E quem não percebe isto, talvez não perceba nada.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa