Um Governo sem cultura ou a ascensão da mediocridade
É triste que em Portugal a cultura seja sempre desprezada, minimizada, olhada de soslaio, posta no canto das grandes decisões políticas. Não admira. Para quantos - do cinema ao teatro, das artes performativas à literatura, dos museus às associações culturais, da música (a de qualidade e não a música de contrafacção cultural) à dança - vivem numa autêntica sobrevivência existencial, a inexistência de um Ministério da Cultura apenas vem confirmar a lógica de mediocridade que este Governo irá implementar nas mais diversas áreas e sectores. Desmantelamento de equipas, de organismos, até mesmo de fundações que têm um papel central na produção, manutenção e investigação culturais tudo pode estar a prazo.
Um sintoma óbvio de como Luís Montenegro concebe a cultura foi essa iniciativa a todos os títulos provinciana, marcelista (o outro, o das Conversas em Família) e triste, o Belém em Família que, no fundo, expôs a pobreza de espírito deste primeiro-ministro. É o populismo mais baixo, a mais baixa concepção de cultura o que este Governo, com a junção do Ministério da Cultura com o da Juventude e Desporto tem para dar aos portugueses. Em vez de fortalecer um ministério cuja função pedagógica mais do que nunca se exige, Montenegro fabrica uma espécie de ministério de aglomerações onde, à laia de uma optimização dos serviços, o que se fará é um absoluto nada.
A própria ministra, nascida em 1989 - uma jovem, cuja memória histórica, o conhecimento da pasta da cultura, dos seus complexos e candentes problemas não coloco em causa que os conheça e reconheça -, a própria ministra, dizia, deve sentir-se, por estes dias, investida de um poder magnânimo que, estou certo, irá partilhar com os seus secretários de Estado, também eles jovens, progressistas, conhecedores da cultura, leitores vorazes, sensíveis homens e mulheres com “sentido de Estado”, os quais, sem dúvida, saberão encontrar as melhores soluções para implementar uma política do espírito que vá ao encontro da visão estratégica de Montenegro e da social-democracia bem tuga, essa que não hesita em reconhecer, com medalha de mérito cultural, os altos serviços prestados pelo nacional-cançonetismo, essa expressão maior e elevada da nossa cultura.
Foi, de resto, essa altíssima faceta do Portugal cultural que fez com que Montenegro visse em Toni Carreira e na sua voz poderosa e rara um momento áureo para, do cimo de uma escadaria, acompanhando o grão cantor, ele próprio, Montenegro, se dar ares de primeiro-ministro com talentos escondidos, uma visão verdadeiramente democrática e familiar (democrática porque familiar) da cultura.
Donde vem, pois, a impressão de ser triste a situação a que sempre a cultura fica votada nos sucessivos Governos? Do que os sucessivos Orçamentos destinam a um sector pobre, marginal e, no fundo, considerado excrescência do regime? De uma inexistente política cultural que, no fundo, criasse públicos para o teatro e os museus, para os livros e para a dança, para a música e para - mais latamente - a contemplação de obras de arte? Sim, virá disso tudo e dos aspectos sempre opacos de certas decisões governativas. Fazer diluir a cultura num Ministério de Juventude e Desporto tem qualquer coisa de SNI, há aqui um bafiento regresso a políticas que visam, no fundo, amesquinhar ainda mais os agentes culturais. E a questão é que, a fazer-se uma junção entre ministérios, não seria de todo inútil, e até seria, creio, um forte sinal de investimento e de visão estratégica, criar-se um Ministério da Educação e da Cultura, posto que são as duas faces de uma mesma moeda: a oxidada moeda das mentalidades. O problema é, de facto, mental. Se quiserem, esta diluição do Ministério da Cultura - num tempo em que Montenegro diz querer atingir os 2% na Defesa - mostra à saciedade as verdadeiras linhas por que se regerá este Governo.
A reforma do Estado é, no limite, uma não-reforma das mentalidades, porque em vez de se apostar numa política de incremento de medidas culturais que democratizassem a alta cultura, fizessem, no fundo, educação e cidadania (esta última palavra sempre tão repetida nos discursos oficiais), o que está em marcha é, gradual e paulatinamente, considerar cultura até as expressões mais corrompidas - porque bacocas e provincianas, redutoras e empobreceras do universo referencial dos portugueses - do que, na perspectiva triste e pobre de quem manda, passará por ser a verdadeira cultura portuguesa. É que só determinados agentes (os amigos do Governo, jamais os artistas que, com a sua arte, questionem a realidade social, satirizem e critiquem os governantes) ou só determinadas propostas ou determinados artistas serão benquistos por este novo Ministério. Como sabemos disto? Pelo que deixou antever a maravilhosa tarde em família que foi Belém cantando, em uníssono, as cantigas tão belas, com letras tão sensíveis e melodiosas cantadas por Luís António Montenegro Carreira.
Creio que foi José Pacheco Pereira quem, entre outros, acertou na mouche ao constatar que a cultura portuguesa nada tem que ver com o nacional-cançonetismo e os popularuchos programas televisivos que vão contribuindo para o abaixamento mental, cultural e educativo de grande parte dos portugueses. A cultura portuguesa deveria ser defendida e dada a conhecer por um ministério que, com poder para tal, tivesse uma agenda de elevação do gosto dos portugueses, cada vez mais entregues a uma ditadura do digital, cada vez mais bestializados por décadas de incultura, de futebolização mental.
Com sucessivas reformas educativas que decapitaram as gerações mais recentes de professores e de estudantes - que pouco ou nada sabem de História, que nada leram da nossa melhor Literatura (neste rectângulo onde são líderes de vendas autores como Afonso noite de Luar ou Raúl Minh’Alma, ou outras chagas do género, verdadeiros fenómenos de vendas de uma indústria editorial que trai em nome do lucro e age com na crença de que “importa ler sem ver o quê” - argumento típico de quem não entende que quem lê Pierre Zaccone não leu Flaubert), que ignoram para que serve ir a exposições, a concertos de música clássica, o ir ao teatro que está para além das revisteiras peças -, uma política assente em verdadeiros valores democráticos era o que este PSD deveria defender.
Mas não podemos pedir muito a quem não sabe conjugar verbos no futuro pronominal reflexo, nem podemos, talvez, julgar quem, estando agora a começar, nasceu em 1989, é jovem, é, de certeza, uma mulher de cultura, que conhece bem as necessidades culturais das pessoas, nomeadamente dos jovens - já que será ministra da Juventude - e dos que, menos jovens, vão agradecer que cultura seja como o desporto: o que se faz por desporto, isto é, o que serve para distrair, jamais para pensar, sentir, conhecer, criticar. É uma política do espírito, esta que agora começa. E aqui começa tudo.
Professor, poeta e crítico literário
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.