Um estranho cansaço na feira do livro

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Lembro-me sempre, a propósito das partidas que nos prega a idade, da história de uma inglesa, que visita Espanha após trinta anos, e observa, em jeito de conclusão sociológica, que os homens espanhóis se tinham tornado muito mais discretos nas suas manifestações politicamente incorretas, denominadas “piropos”, já que nenhum desses cumprimentos intempestivos ela recebera desta vez.

O cansaço que me assalta ao subir e descer a Feira do Livro atribuo-o assim à maior quantidade de livros e editoras a visitar, recusando soluções imaginárias, como a de um amigo meu que sustenta que, num movimento tectónico exclusivo de Lisboa, a inclinação do Parque Eduardo VII ficou mais alteada e íngreme, obrigando quem a visita a um maior esforço físico.

Raramente encontro nesta Feira os livros que procuro, mas essencialmente busco amigos escritores e editores, para a retomada de um convívio que me faz falta. Hoje, feito o balanço, dou-me conta que faltei à maioria das apresentações de livros dos meus amigos, não por preguiça egoísta da minha parte, mas simplesmente por cansaço.

Foi bom ver a Feira cheia de gente, atravessada por crianças ativas e curiosas, mas o esforço de passar por entre as gentes, para depois não conseguir encontrar em nenhuma das barracas o livro que procuro, resulta numa frustração, que só é compensada pelo encontro com os amigos, sentados a uma mesa à espera dos seus leitores.

Os leitores são a grande compensação para um autor nestas feiras, mas nunca esquecerei a senhora que, na Feira do Livro de Bruxelas, se interessou pelo título das minhas “Légendes de l’Inde”, me perguntou qual tinha sido a minha experiência da Índia, mas, ao abrir o livro recuou e disse, com alguma indignação: “Ah, é poesia! Isso não...”.

Quem vai compulsivamente às livrarias como eu acaba por ver nos pavilhões da Feira ou os livros que já comprou ou os livros que decidiu não comprar. Mas a Feira continua a ser aquele lugar onde compensa subir os píncaros do Parque Eduardo VII para encontrar aqueles amigos que não vemos há muito tempo, autores, editores, gentes das letras.

Como José Viale Moutinho, vencedor do prémio dst com o seu notável e amargo Desaparecimento Progressivo, um livro de excelente poesia deste escritor, autor de contos, de crónicas, de estudos literários, grande figura das nossas letras. Como os quase homónimos João de Melo (açoriano) e João Melo (angolano), ambos meus bons amigos, que eu não confundo. Como Manuel Alegre, apresentando as suas memórias, cheias de poesia e de História. E como tantos outros que eu aqui poderia nomear, sem esquecer os meus amigos e editores Vasco David e Nuno Gomes.

E, para não dizerem que já não falo de política, permito-me notar a ambivalência das expressões “por um voto se ganha, por um voto se perde” e “ganhar por poucochinho”. Em eleições de muito estreita margem, a primeira é usada pelos vencedores, a segunda pelos vencidos. Como vimos nas mais recentes eleições, as vitórias e as derrotas mudam depressa e ganhar por essa estreita margem altera o brilho e a glória, conforme o vencedor. Excepto para os nossos comentadores, para quem, se o vencedor é o PS, ele “ganhou por poucochinho”, mas se for a AD a vitoriosa então “por um voto se ganha, por um voto se perde”...

Diplomata e escritor

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