Um cardeal deve participar num evento partidário?
A recente participação do Cardeal D. Américo Aguiar, Bispo de Setúbal, nas jornadas parlamentares do PSD e do CDS gerou algum debate, levantando a questão crucial sobre a separação entre o poder religioso e a política partidária. Esta discussão, brevemente abordada na coluna Sobe e Desce deste jornal, merece uma análise mais aprofundada.
Américo Aguiar é um cidadão como qualquer outro, não estando limitado na sua intervenção cívica. Numa sociedade livre e plural, tem todo o direito de partilhar as suas perspetivas sobre os temas de interesse coletivo.
No entanto, a sua posição particular impõe considerações adicionais. Américo Aguiar não é um cidadão qualquer. Se tudo lhe é permitido, nem tudo lhe convém. É o bispo de Setúbal. É cardeal da Igreja Católica. Quando fala em público, não se representa apenas a si mesmo, mas também à hierarquia da Igreja e, em certa medida, aos católicos da sua diocese. Tem de saber escolher os eventos em que participa, com muita sabedoria e discernimento. Da mesma forma que um diretor de um jornal não deve aceitar moderar um painel de debate num evento partidário, ou que um general no ativo não deve aparecer de uniforme a comentar sobre temas internacionais, porque representam as instituições que servem, um bispo não se pode deixar arrastar para uma situação que possa dar origem a perceções erradas.
Essa distinção torna-se ainda mais relevante quando analisamos os diferentes níveis de envolvimento político. Uma coisa será a participação numa conferência ou noutro evento público que conte com a participação de representantes de vários partidos e de outras instituições da sociedade civil. Outra será a participação num evento partidário, que aos olhos da maioria da população dificilmente se distingue de um comício ou de um jantar de carne assada. Uma coisa é a política em sentido lato, outra é a política partidária. E um bispo deveria manter distância em relação a esta última.
A sua participação num evento partidário pode transmitir a ideia de que existem partidos mais “católicos” que outros. Isto será negativo para a democracia, porque abre a porta ao aproveitamento político dos sentimentos religiosos. Mas será também negativo para a própria Igreja, que arrisca ficar associada a determinada área política, limitando a sua capacidade de alcance. Dom Américo bem pode argumentar que irá aos eventos dos outros partidos, se o convidarem. O problema é que a maioria dos partidos nunca o farão e o cardeal e a própria Igreja correm o risco de ficar conotados com aqueles que o convidam. Esta é apenas uma, entre muitas outras razões, pelas quais a Igreja deveria temer mais os Constantinos do que os Neros.
Tão pouco colhe o argumento de que a intervenção se justifica pela oportunidade de falar aos militantes do PSD e do CDS. Um cardeal, para mais um tão mediático, não tem dificuldade em comunicar com quem quer que seja.
Por fim, temos o precedente que se pode criar, com implicações para a própria democracia. Hoje temos um cardeal, considerado moderado, a participar num evento de dois partidos do “centrão”. Amanhã poderemos ter outras figuras religiosas - católicas, evangélicas ou muçulmanas - a participar em eventos de partidos extremistas, num ambiente de crescente polarização da sociedade. E essas figuras poderão argumentar, com razão, que não há mal porque o bom do Dom Américo também o faz.
Nota: A demolição de 64 habitações ilegais no Bairro do Talude, em Loures, deixando desalojadas dezenas de pessoas, incluindo idosos e crianças que tiveram de passar a última noite em tendas, é uma decisão profundamente questionável. É impossível não nos questionarmos se esta decisão não se explica com o contexto pré-eleitoral num país onde a insensibilidade para com os elementos mais fracos da sociedade passou a ser encarada como algo que rende votos. Foram asseguradas alternativas credíveis para estas famílias poderem encontrar uma habitação digna? Resolveu-se um problema no concelho ou foi criado um ainda maior?