Um brilhozinho nos olhos

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Nestes tempos sombrios que se sucedem - da pandemia à guerra e à crise económica -, a música tem ocupado um lugar de claridade que nos deixa "um brilhozinho nos olhos". Recordamos os concertos que chegaram por todas as vias durante a pandemia (desde os palcos virtuais às partilhas entre vizinhos nos mais inusitados lugares). Muitos de nós (e eu também) temos uma canção que nos chega em momentos de aflição ou desânimo, talvez outras para a alegria. Este verão assistimos às enchentes dos festivais de música pelo país inteiro, depois de dois anos de doloroso confinamento, em particular para os profissionais da música, que passaram por muitas dificuldades. O público de todas as idades sentia falta desse contacto que os meios virtuais não conseguem substituir. Ainda estamos recordados da emoção que rodeou a vinda a Portugal dos Coldplay, com os bilhetes quase esgotados em menos de um dia, quatro concertos em Coimbra que só acontecerão no próximo ano.

Estas grandes bandas têm, como sabemos, estruturas de promoção muito profissionais e de longo alcance, que permitem estruturar as digressões com muito tempo de antecedência. Nada a apontar! O mesmo não acontece com outros artistas que, nos últimos dois anos, viram desestruturadas as suas redes e têm agora ainda maior dificuldade em aceder aos espaços e públicos.

Na próxima semana, Portugal acolhe pela segunda vez a maior feira internacional de música, Womex - Worldwide Music Expo, a decorrer em Lisboa de 19 a 23 de outubro, que reunirá mais de dois mil e quinhentos programadores, produtores e jornalistas para ouvir artistas de todo o mundo.

Esta semana decorre também a 8ª edição de EXIB Música, uma mostra de música ibero-americana que a cidade de Setúbal acolhe pela terceira vez e tem o mesmo propósito de reunir diferentes profissionais para promover a música independente. No caso de EXIB Música, concorreram mais de 400 projetos tendo sido selecionados por um júri internacional 22 projetos de nove países da América Latina, Espanha e Portugal. A qualidade dos projetos tornou muito difícil a escolha.

Não é demais salientar o potencial das indústrias culturais e criativas que contribuem com 6,1% para a economia mundial e geram quase 30 milhões de empregos, sendo o setor com mais pessoas entre os 15 e os 29 anos. Na América Latina e Caribe, representa entre 2% e 6%, empregando quase 2 milhões de pessoas.

Num tempo em que é preciso, cada vez mais, explorar setores económicos sustentáveis, a criatividade é um recurso renovável desde que o possamos apoiar e desenvolver. Reconhecendo os desastrosos efeitos da pandemia num setor promissor e em grande crescimento, as Nações Unidas declararam 2021 Ano Internacional da Economia Criativa para o Desenvolvimento Sustentável. Como forma de sublinhar o seu impacto na recuperação económica, coube à Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) liderar as ações e insistir na ideia de que a criatividade é a indústria de amanhã.

Há muitas vezes uma rejeição deste reconhecimento da dimensão económica das artes, que gosto de sublinhar para sairmos do beco em que muitas vezes se quer encurralar a Cultura como despesa, ignorando a importância de um investimento que é reprodutivo e renovável. As artes têm ainda uma outra dimensão que é preciso agregar como valor: a transformação dos territórios. Quantos lugares se transformaram através de equipamentos culturais ou festivais que lhes estão associados? Desde a Casa da Música no Porto, ao velhinho Festival de Vilar de Mouros ou aos Festivais de Paredes de Coura, da Zambujeira do Mar ou Músicas do Mundo de Sines. Recordo como algumas populações desses lugares do interior lamentavam a suspensão destes festivais que lhes traziam, claro, muito barulho e alguma confusão, mas também animação e comércio.

É, por isso, prometedor que Setúbal possa acolher a Capital Ibero-americana da Música, tornando-se um centro de mostra artística, em particular para toda a Europa. Também por essa razão a Conferência Música e Cidade, promovida pela EXIB, que decorrerá a 13 e 14 de outubro, permitirá um importante debate que reúne diferentes comunidades - dos cidadãos aos artistas e produtores, aos decisores públicos - "com a cultura e a música como águas transformadoras" de novas formas de habitar. A música pode salvar e até descobrir um brilhozinho nos olhos.

Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos

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