Um ano depois de Os Lusíadas em turco
Em 2022 comemorámos os 450 anos da publicação de obra-prima da literatura portuguesa denominada Os Lusíadas, escrito pelo poeta nacional de Portugal, Luís Vaz de Camões. 2022 não foi apenas especial por isso, também foi especial para os leitores turcos, por poderem ler esta obra pela primeira vez em turco. Desde a sua publicação, a epopeia criou entusiasmo entre os leitores turcos, sobretudo, poetas, escritores, editores, académicos e historiadores na Turquia. Eu, enquanto tradutor, modestamente tive de responder a alguns emails curiosos e entusiasmados de alguns leitores turcos, e na maioria das vezes admiradores da obra e da sua tradução em turco. A obra em si até chamou interesse dos colecionistas portugueses, por isso ficou disponível nos alfarrabistas de Lisboa.
Eu, enquanto trabalhava sobre este texto extraordinário, tinha noção do que não fazia uma qualquer tradução, como uma obra de um escritor moderno ou contemporâneo, como tem sido ultimamente moda traduções de Fernando Pessoa, José Saramago ou outros tais em turco... Esta obra além de representar a identidade duma nação, é um texto histórico, e deveria ser tomada em consideração com grande exigência, e também com um conhecimento profundo sobre o tema dos Descobrimentos portugueses dos séculos XV e XVI.
Eu reparei que já não era a mesma pessoa depois deste título honorífico de ser o primeiro tradutor deste poema numa língua de um país onde maioritariamente vivem muçulmanos (embora te nha sido publicada a sua tradução em árabe por Abdeljelil Larbi dois meses depois, por acaso). A tradução carregou-me com uma responsabilidade de representar, e clarificar a sua existência, durante a sua vida na literatura turca. Eu sem querer ou sem reparar tornei-me semi-famoso na Turquia entre os tradutores, apesar de ser esta obra a minha primeira tradução literária da língua portuguesa.
Enquanto eu traduzia o texto, eu tinha certeza do que esta nova tradução iria dar caminho para novos aspetos sobre o livro, e sobre a história do Oceano Índico do século XVI. Quero modestamente destacar alguns perspetivas minhas sobre o tema.
Moradores da Ilha de Moçambique seriam turcos?
O Oceano Índico do século XVI, apesar de ser novamente descoberto pela via marítima por Vasco de Gama, era muito conhecido entre os geógrafos, e cartógrafos islâmicos. Aliás, os muçulmanos já conheciam a existência do Cabo da Boa Esperança no sul do continente África. Um historiador árabe chamado Mesudi, denominado o Heródoto Árabe, descreveu detalhadamente a costa oriental da África. Falava sobre as tribos denominadas como Uaque-Uaque, e chamava ao rio Zambezi o rio Uaque-Uaque, cujo nome é batizado como Rio de Bons Sinais por Vasco da Gama. O cartógrafo Al Idrisi mostrava esta região no seu mapa detalhadamente desenhado no século XII. E os turcos?
Os turcos, apesar de conquistarem Constantinopla em 1453, ainda não tinham uma existência organizada nas costas do Índico. Mas alguns comerciantes, espiões sempre estavam presentes. Além disso, navegantes fugitivos que se tinham envolvido em casos problemáticos no Mar Mediterrâneo vinham para o Mar Vermelho, e de seguida para o Índico para prestar serviços de forças marítimas para os sultões da Índia. Também alguns turcos xiitas, provenientes da Pérsia, sobretudo da região de Xiraz, vinham também para a zona através do Golfo Pérsico, para procurar prosperidade através do comércio.
A fundação da primeira povoação na Ilha de Moçambique tinha sido, através de um senhor chamado possivelmente Musa bin Beg. O seu nome revela uma mistura de muitas culturas. "Bin" significa filho em árabe, mas a palavra "beg" faz nos pensar na palavra "bey" em turco, o que quer dizer "senhor". Muitos historiadores acreditam que Musa bin Beg era um comerciante árabe. Mas a etimologia do seu nome deixa uma porta aberta para a hipótese de ele ser um turco. Este mito existe hoje em dia em Moçambique também. Eu testemunhei que várias pessoas acreditam nesta tese, durante a minha estadia em Moçambique nos anos de 2017-2018. Mas o que me fez mais pensar sobre esta hipótese foram os versos de Camões quando ele diz:
Que são aquelas gentes inumanas
Que, os aposentos Cáspios habitando,
A conquistar as terras Asianas Vieram e, por ordem do Destino,
O Império tomaram a Constantino...(I60)
..E, perguntando tudo, lhe dizia
Se porventura vinham de Turquia...(I62)
...Nem sou da terra, nem da geração
Das gentes enojosas de Turquia,..(I64)
Nas estrofes 60 e 62 Camões refere claramente que o rei da Ilha de Moçambique, quando viu a frota de Vasco da Gama, pensou que eles seriam possivelmente turcos. E de seguida, quando Vasco da Gama nega esta afirmação e fala mal sobre os turcos, o rei muda de posição amigável e declara a guerra contra os portugueses. Desta cena, entendemos que de certa forma Camões imaginou que os moradores de ilha conheciam os turcos, e possivelmente já tinham visto barcos turcos deste modo. Por isso quando viram a frota pensaram que eles eram turcos como eles tinham visto ou ouvido antes. Eles tinham uma certa simpatia por eles, por isso quando souberam que Vasco da Gama não falava bem sobre eles declararam guerra contra a sua frota. Apesar de isto tudo ser na imaginação de Camões, a existência deste mito até na altura de Camões indica-nos para pesquisar mais sobre este assunto, e a existência turca na África Oriental antes de século XVI. Hoje em dia sabemos que os otomanos deram importância a esta Ilha de Moçambique mesmo depois desse século. Um Sheikh otomano, denominado Ebu Bekir Efendi, enviado do sultão otomano para a Cidade do Cabo, na África do Sul, no século XIX, fala sobre existência de uma mesquita de Juma na Ilha de Moçambique construída pelo sultão otomano Yavuz Sultan Selim no seu livro Beyanuddin escrito em Afrikaans. Hoje em dia não sabemos se aquela mesquita realmente existiu ou não. Mas este documento histórico revela de novo para nós que a ilha esteve sempre no foco dos sultões otomanos.
Um Marco Polo esquecido de Portugal - Fernão Mendes Pinto
Depois da minha tradução de Os Lusíadas eu conheci outro livro que fala sobre a Índia e a Ásia do século XVI. Eu não tinha muitas expectativas sobre ele, porque nunca antes tinha ouvido seu nome, nem sequer o nome de seu autor Fernão Mendes Pinto. Depois de obter a primeira cópia da sua Peregrinação, fiquei mesmo admirado, e entusiasmado porque reparei que eu estava a ler um livro equivalente ao Livro das Maravilhas do italiano Marco Polo. Apesar de mais ou menos três séculos de diferença, na minha opinião, Pinto conseguiu produzir a maior documento sobre a Ásia daquele tempo. Por isso, embora o seu caráter literário e nacional, eu considerava o autor maior de história de Portugal, Fernão Mendes Pinto, em vez de Luís de Camões. Fernão Mendes Pinto fez algo muito diferente e original que nunca se tinha visto na altura. Quando Camões falava sobre feitos heroicos, Pinto foi um dos críticos do colonialismo, e foi um dos primeiros ocidentais que aprendeu sentir empatia pelo "outro", seja mouro ou gentio. As ideias de Pinto eram muito mais à frente do seu tempo. Talvez por isso o seu livro esperou mais umas seis décadas para ser publicado. Se um flamengo chamado Pedro Craasbeck não tivesse a coragem de publicar os manuscritos encontrados nas estantes de um mosteiro, nós nunca iríamos conhecer este mundo cheio de aventuras, perigos, muita espiritualidade e mistério.
Eu já que tinha conhecimentos sobre tema devido a minha tradução anterior, ainda tive coragem de mergulhar no mundo de Pinto. Estou a continuar a trabalhar esta tradução. Estou determinado para que esta obra também chegue o mais rápido possível à literatura turca. Mas sinceramente tenho que admitir que em Portugal é surpreendente como muitos não conhecem este autor e a sua obra, ou os que conhecem, conhecem-lhe com uma má fama, dizendo "Fernão Mentes? Minto.". Não tem nada para comemorar seu nome ilustre apesar de um monumento minúsculo em Almada, e uma escola secundária.
Será Fernão Mendes Pinto o único esquecido?
Na minha opinião para entender muita coisa no mundo de hoje, é essencial entender a história dos descobrimentos geográficos feitos pelos portugueses e espanhóis. Porque, não houve nada mais importante no mundo nos últimos cinco séculos, segundo a opinião do historiador turco Emrah Safa Gurkan. Por exemplo, os americanos foram à lua, mas Neil Armstrong não regressou para os EUA com um mundo novo, como Vasco da Gama regressou para Portugal ou Colombo voltou para Espanha. Estudando sobre a Índia do século XVI, nós temos que dar muitas voltas sobre as personagens, as batalhas, as cidades e as conceptualizações do tempo. Eu além do Fernão Mendes Pinto, conheci duas personagens muito importantes. Um deles é Pedro Teixeira, outro é Fernão Lopes (escudeiro, não confundir com o cronista). Pedro Teixeira escreveu uma obra grande tal como Pinto em português, mas antes de publicar seu livro optou por publicar em castelhano, talvez para pedir mecenas mais abundantes do palácio espanhol na altura da União Ibérica no seu tempo. O seu livro chamado: Relaciones De Pedro Teixeira Del Origen, Descendencia Y Succession De Los Reyes De Persia Y De Harmuz Y De Un Viage Hecho Por El Mismo Autor Dende La India ... De Viajeros Hispanicos apesar de suas traduções em várias línguas nunca chegou ser publicado em português (ou eu não descobri ainda), Também é muita pena não existir as versões de Fac-Simile desta obra em Portugal. A segunda personagem escondida que se revela nesta história, é Fernão Lopes.
Fernão Lopes pode ser fonte de inspiração de Adamastor de Camões?
Em Bursa, na Turquia, existe um cemitério chamado Muradiye. Este cemitério tem um ar bem diferente dos túmulos esplêndidos de Istambul, porque aqui é o "loosers'club" do Império Otomano. As sepulturas pertencem maioritariamente aos príncipes ou paxás executados. Se nós formos procurar um looser da história da descobrimento da Índia, ele seria obviamente Fernão Lopes, soldado renegado em Goa. Muitos de nós não chegaria a ouvir p seu nome, se um historiador e investigador chamado A.R. Azzam não publicasse sua biografia chamada O outro Exílio, também foi publicado em Portugal, no ano de 2019. (Este ano vai ser publicado na Turquia, eu fiz redação do texto traduzido do inglês). Fernão Lopes era um escudeiro que partiu para Goa com a frota de Afonso de Albuquerque. Em Goa casou com uma moura, ou pela sua paixão ou por procurar fortuna nas outras mãos converteu-se ao Islão e de seguida fugiu de Goa e passou para o lado do exército de Hidalcão, e lutou contra os portugueses juntamente com o comandante Rasul Khan. Obviamente este acto rebelde iria encontrar um castigo grave da parte de Afonso Albuquerque, já era famoso por executar um fidalgo à frente de outros marinheiros. Resumindo, Albuquerque mandou cortar nariz e orelhas, o braço-direto e um dedo da mão esquerda do soldado. Depois da morte da vice-rei, ele optou por regressar para Lisboa, mas quando o barco parou para aguada na Ilha de Santa Helena no Atlântico, ele fugiu do barco e escondeu-se. Ele já com seu aspecto "feio, monstruoso" deveria ter ganhado sociofobia. Por isso ou por razões que nunca vamos saber ou entender, ele começou a viver uma vida isolada, nesta ilha, e falava com os tripulantes dos barcos que por aí passavam. Ele se tinha tornado um santo, ou uma personagem mítica entre marinheiros. Os que passavam por aí tentavam lhe agradar, faziam os trabalhos dele. Talvez pensavam que isto iria trazer boa ventura para eles no seguimento do seu caminho. Ele viveu ali isolado cerca de vinte anos, e morreu na ilha. Eu sinceramente assim que ouvi esta história lembrei-me logo o Adamastor de Camões. Vou tentar enumerar certas características comuns entre Adamastor e Fernão Lopes. Vamos primeiro relembrar como é que Camões o descrevia:
..Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;..(V51)
...A vontade senti de tal maneira
Que inda não sinto cousa que mais queira.(V52)
Pela grandeza feia de meu gesto(V53)
...Daqui me parto, irado e quase insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
(Que é grande dos amantes a cegueira)(V54)
Quem de meu pranto e de meu mal se risse..(V57)
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.»(V59)
Fernão Lopes também lutou contra os raios, mas desta vez não de Vulcano, mas do Vulcano português, Afonso Albuquerque. E ele cometeu nesta guerra por ele apaixonar para uma moura, e simpatizar com os mouros por causa dela. Então, aqui fala-se de certa forma de uma cegueira causada pela paixão. Outra coisa mais destacada é o aspecto feio de Adamastor, e de Fernão Lopes, depois de ele ter sido castigado. Muitos obviamente devem ter gozado com aspecto dele. No fim, ele quis fugir para terras longes onde não passava ninguém, tal como fez o Adamastor. É muito curiosa a proximidade geográfica da Ilha de Santa Helena com o Cabo da Boa Esperança. Camões viajou para a Índia depois da morte de Fernão Lopes (1544). Mas devido à sua reputação em Lisboa, e em Goa, obviamente deve ter ouvido sobre esta vida tão original e inspiradora. Eu não sou historiador, nem entre tantos especialistas do tema, tenho alguma especialidade. Mas enquanto tradutor, senti ou interpretei fortemente que a fonte de inspiração do caráter do Adamastor de Camões seria possivelmente Fernão Lopes, apesar de alguns dos meus amigos portugueses pensarem que esta tese ainda precisa de ser estudada mais vastamente. Por isso eu coloco esta questão para ser avaliado, e estudado mais em Portugal entre especialistas de Camões. Muitos me perguntam, o que é que eu descobri, depois de traduzir Os Lusíadas para turco. Se uma nova tradução de Os Lusíadas para a língua do maior império do mundo do século XVI, isso só podia ser este.
Tradutor turco de Os Lusíadas, vive em Portugal