Trump vs Newsom: o elogio do federalismo americano

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É impossível não pensar um pouco nas eleições presidenciais de 2028 quando se assiste à troca de palavras entre Donald Trump e Gavin Newsom, o governador da Califórnia, sobre o envio de tropas federais para Los Angeles, onde os protestos iniciais contra a deportação de imigrantes ilegais se transformaram em cenas de violência. Mesmo se já pareceu ter desistido da ideia de tentar mudar a Constituição para concorrer a um terceiro mandato, Trump certamente pensa no legado, incluindo a política anti-imigração, e preferirá um republicano a suceder-lhe na Casa Branca, talvez o seu vice-presidente, JD Vance. Já Newsom é uma das estrelas dos democratas, e um nome apontado como forte possibilidade para as eleições que se realizam daqui a três anos (antes, haverá ainda intercalares, que serão um teste a Trump, dependendo se os republicanos mantém ou não o controlo das duas câmaras do Congresso).

Mas por trás da luta política mais ou menos imediata, o que se passa em Los Angeles, com a chamada dos marines por Trump mesmo que o governador insista que não havia necessidade, tem ramificações muito profundas na tradição política americana. Trump bem pode escandalizar quando alude à possível prisão do governador da Califórnia, e Newsom igualmente quando associa a palavra ditador ao presidente dos Estados Unidos, mas quem conhece a História americana identifica no choque verbal o velho problema do poder do governo central versus o poder dos estados. Num musical de grande sucesso na Broadway, Hamilton, esse é um dos temas centrais, com o primeiro secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, a preconizar um centro forte, enquanto o secretário de Estado, o futuro presidente Thomas Jefferson, via a federação como uma entidade em que os estados se associavam, mas ninguém verdadeiramente estava acima. George Washington, o primeiro presidente, deixou que as teses de Hamilton ganhassem terreno, através por exemplo da criação de um banco central, mas mesmo assim o debate prolongou-se nos séculos seguintes. A Guerra Civil de 1861-1865 foi por causa da escravatura, mas iniciou-se por os estados do Sul terem decidido a secessão para resistir ao sentimento abolicionista no Norte. O choque entre as duas conceções do federalismo voltou a sentir-se nas décadas de 1950 e 1960, por causa do fim da segregação racial.

A existência de tensões, e mesmo a guerra civil de meados do século XIX, não significa que o federalismo americano não tenha funcionado bem em geral ao longo destes quase 250 anos depois da Declaração de Independência de 1776. Por exemplo, se a Câmara dos Representantes espelha a demografia do país, com a Califórnia ou o Texas a esmagarem em número de eleitos o Vermont ou Wyoming, já o Senado prevê dois senadores por estado. E os senadores ficam seis anos, enquanto os representantes têm de ir a votos a cada dois anos. Também nas presidenciais se nota esse esforço de dar peso aos pequenos estados, fazendo com que valha no final o Colégio Eleitoral e não a simples contagem de quem teve mais votos. Trump, aliás, sabe bem disso, pois em 2016 ganhou um primeiro mandato mesmo sendo Hillary Clinton mais votada popularmente.

A vastíssima autonomia dos estados, hoje 50, é uma das forças da democracia americana. Quando um presidente é mais conservador, os estados liberais funcionam como contrapeso. O mesmo acontece, em sentido inverso, quando o presidente é mais liberal. E com a extrema mobilidade da sociedade americana, isso até pode gerar fenómenos como americanos liberais a procurarem instalar-se, por exemplo, na Califórnia, enquanto outros, de outra ideologia, se sentirão mais confortáveis a fazer vida no Texas. O risco, já alertado, é que as fortes divisões atuais tornem tudo mais monolíticos, nesse caso prejudicando a rotação no palácio do governador e nas câmaras estaduais, e perpetuando estados azuis e estados vermelhos

O choque entre Washington, a capital federal, e a Califórnia é um bom teste à capacidade da classe política americana de fazer compromissos em nome do interesse nacional. A Administração Trump está a lidar com o governador de um estado que não só é o mais povoado do país, como, caso fosse independente, seria a quarta maior economia mundial. Trump e Newsom, independentemente das ambições de criar um legado ou de tentar altos voos, deveriam perceber que têm de dialogar para encontrar soluções.

Diretor Adjunto do Diário de Notícias

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