Trump perdeu o killer instinct?
Algo se passa com Donald Trump. Não mostra a mesma energia que há uns meses, muito menos a garra que demonstrou ao erguer desafiador o punho depois de uma bala lhe ter raspado o rosto num comício na Pensilvânia em meados de julho. Parece mesmo estar à defesa, incapaz de reagir aos ataques de Kamala Harris, que no discurso de encerramento da convenção democrata em Chicago, na noite de quinta-feira, proferiu duríssimas palavras contra o ex-presidente agora de novo candidato pelo Partido Republicano: “Trump não é um homem sério. Mas as consequências de pôr Donald Trump de novo na Casa Branca são extremamente sérias”. Claro, os milhares de apoiantes democratas na sala não pouparam os aplausos à mulher que sendo já a primeira vice-presidente da história dos Estados Unidos, ambiciona tornar-se também a primeira presidente depois de 45 homens (Joe Biden é o 46.º presidente, mas apenas por Grover Cleveland contar duas vezes).
Terá sido a desistência de Biden a favor de Harris que mexeu profundamente com Trump. Durante meses, o debate autodestrutivo entre os democratas sobre se o presidente estava ou não em condições físicas e mentais para assegurar um segundo mandato jogou na perfeição a favor do rival republicano. Trump tem 78 anos, só menos três do que Biden, mas parecia passar incólume ao debate sobre a idade, mesmo tendo sido em 2017 o presidente mais velho de sempre a tomar posse e, caso ganhe de novo a 5 de novembro, recuperará o recorde. Sim, faz menos gaffes que Biden, mas também as faz, só que as atenções nele sempre estiveram mais centradas na retórica agressiva, como quando agora insiste em chamar Harris de “camarada” e a acusa de ser “comunista ou marxista”, etiquetas que nunca foram populares entre os americanos.
Chamar “camarada” a Harris parece até pouco vindo de Trump. Num comício recente, queixou-se à audiência de que a sua equipa de conselheiros o andava a travar, a obrigar a vestir uma pele de moderado que não é a sua. Claro que ouviram-se logo gritos a pedir a Trump para ser autêntico, mas o próprio candidato sabe que quem o aconselha tem razão: aos fiéis incondicionais é preciso juntar os indecisos, e para isso há que insistir em temas como a economia, o crime e a imigração, considerados pontos frágeis da candidatura democrata, seja com Biden antes, seja com Harris agora.
Trump sabe que para ganhar as eleições na América não basta ser muito votado, não basta sequer ser o mais votado. É preciso ganhar votos aqui e além em certos condados que por sua vez podem garantir a vitória num estado vital e logo ter os tais grandes eleitores que no final de contas decidem quem vai para a Casa Branca. Aliás, Trump sabe que em 2016 foi assim, com apoios estratégicos, por exemplo no Michigan, que foi eleito presidente, mesmo que Hilllary Clinton tenha ganhado com clareza no voto popular.
Não são, porém, as dicas dos conselheiros a razão da falta de energia de Trump. O que lhe faz mesmo diferença é já não ter Biden a concorrer contra ele. O republicano queria uma espécie de desforra de Biden pelo que sucedeu em 2020. Queria vingar-se. Ganhar a Casa Branca é o objetivo, mas ganhá-la a Biden seria a cereja no topo do bolo. Só que agora não é o “Sleepy Joe” que o vai enfrentar nas urnas, mas a tal “comrade”, já não é o “Joe Dorminhoco” o concorrente, mas sim a “camarada”. E será com Harris que terá de debater a 10 de setembro na televisão, um encontro que se prevê em nada semelhante ao que teve a 27 de junho, na CNN, com Biden, um dos tais momentos em que pareceu haver um tremendo fosso de idade e não apenas os três anos.
Uma das forças de Kamala é a relativa juventude. Tem 59 anos. A outra é ter escolhido um candidato a vice, Tim Walz, que lhe acrescenta muito, ao contrário da aposta de Trump, um JD Vance que muitas vezes parece querer ser um Trump II. Mas o maior trunfo da atual vice-presidente tem sido a sua capacidade de motivar as bases do partido, congregar a vasta coligação que são os democratas, das minorias aos com mais estudos, das mulheres aos colarinhos azuis. Olhando para presidenciais mais recentes, há uma maioria sociológica na América de democratas. Desde 1992, os seus candidatos ganharam em voto popular todas as eleições para a Casa Branca, exceto em 2004. E em 2020, quando o duelo Trump-Biden foi travado, a mobilização do eleitorado democrata fez do presidente agora de saída o mais votado da história dos Estados Unidos, com mais de 81 milhões de votos.
As sondagens não favorecem Trump. Mas faltam mais de dois meses para as presidenciais. Em 2016, também as perspectivas do candidato republicano pareciam más nesta fase da campanha, sobretudo depois da convenção democrata, e no fim Trump foi o vencedor. E não esquecer que em 2020, apesar da derrota para Biden, aumentou o número de votos e até se tornou o segundo homem mais votado de sempre nos Estados Unidos. Portanto, é apressado dizer que Harris já ganhou. Trump, vestindo a sua pele ou seguindo à letra os conselhos da equipa, há de voltar a ganhar presença. Mas, para já, parece mesmo que perdeu o killer instinct, esse gosto por desferir golpes e mais golpes verbais que deixam o adversário sem resposta, atordoado.