Tribunal Constitucional: guardião da Constituição ou órgão de veto político?

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O Tribunal Constitucional (TC), concebido na revisão constitucional de 1982 como o guardião último da Lei Fundamental, exibe hoje uma postura institucional pouco consentânea com a missão que lhe foi atribuída. Por um lado, assume um protagonismo político e mediático através do mecanismo da fiscalização preventiva, interferindo nas disputas legislativas entre o Governo, a Assembleia da República e o Presidente da República. Por outro lado, e de forma paradoxal, parece abdicar da sua missão jurisdicional primária: a tutela efetiva dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos e das empresas no âmbito da fiscalização concreta. O mecanismo da fiscalização preventiva da constitucionalidade, previsto no artigo 278.º da CRP, permite ao Presidente da República (PR), entre outras entidades, requerer ao TC a apreciação da conformidade de um diploma com a Lei Fundamental antes da sua promulgação. No entanto, a sua utilização recorrente em diplomas de elevada carga política e mediática tem tido, de há uns anos a esta parte, o efeito de projetar o Tribunal para o centro da arena política, conferindo-lhe um papel que se assemelha ao de uma “terceira câmara legislativa” ou de um ator com poder de veto.

O Acórdão n.º 785/2025, que incidiu sobre as alterações à “Lei dos Estrangeiros”, constitui um exemplo disso mesmo. O diploma em causa, o Decreto n.º 6/XVII da Assembleia da República, teve origem numa iniciativa do Governo e visava introduzir restrições significativas ao regime de reagrupamento familiar de imigrantes. Após a sua aprovação parlamentar, o PR suscitou ao TC a fiscalização preventiva relativamente a alterações introduzidas em matéria de reagrupamento familiar, apelando a uma maior “dose de humanismo”. A decisão do TC, proferida a 8 de agosto de 2025, deu razão às preocupações presidenciais, tendo declarado a inconstitucionalidade de cinco das sete normas submetidas a escrutínio. A fundamentação, exposta publicamente pelo Presidente do TC, centrou-se na violação de direitos fundamentais, em especial, na violação do direito ao reagrupamento familiar e da proteção à família. A decisão não foi unânime, tendo registado “votos de vencido”, expondo a existência de divisões internas sobre uma matéria politicamente sensível. Mas, se na fiscalização preventiva o TC assume um protagonismo que acaba por ser político; já na fiscalização concreta – o mecanismo através do qual os cidadãos e as empresas podem ver tutelados os seus direitos constitucionais em casos específicos – a sua postura é de retração e de inacessibilidade. Enquanto se sente confortável em interferir nas questões jurídicas com consequências políticas, o TC tem erguido, de forma sistemática, barreiras processuais e financeiras que frustram o acesso à justiça constitucional a cidadãos e empresas, abdicando, na prática, da sua função jurisdicional mais elementar.

Na realidade, a jurisprudência e a prática forense demonstram um “sucesso muito reduzido” dos recursos interpostos por particulares, que se deparam com um verdadeiro labirinto processual e elevadíssimas penalizações financeiras. A principal crítica dirigida ao Tribunal nesta matéria é o “excesso de formalismo” que dita que genericamente a rejeição liminar dos recursos através de decisões sumárias de não admissão, com base em tecnicismos processuais que, para muitos, parecem desproporcionados e contrários ao princípio pro actione: o “não conhecimento” dos recursos tornou-se, para os cidadãos e empresas, mais a regra do que a exceção. A barreira processual do formalismo é complementada e reforçada por um incontornável obstáculo financeiro: o elevado custo das custas judiciais que o TC aplica às partes. A condenação em custas, que pode atingir valores de 20, 25 ou 30 Unidades de Conta (1 UC = 102€), funciona como uma verdadeira sanção pecuniária que dissuade cidadãos e empresas de exercerem de recorrerem em matéria de fiscalização da constitucionalidade. Particularmente chocante é a aplicação de custas elevadas mesmo nos casos em que o recurso é liminarmente rejeitado por questões formais, sendo as custas uma evidente penalização pela ousadia de incomodar o Palácio Ratton. A atual disfunção vocacional do Tribunal, marcada pela sua politização na fiscalização preventiva e pela sua inacessibilidade na fiscalização concreta, exige uma reflexão séria, trazendo à discussão duas soluções: a transferência de competências em sede de fiscalização concreta para o Supremo Tribunal de Justiça semelhante ao modelo americano ou a criação de um recurso de amparo semelhante aos modelos espanhóis e alemão. A elas voltaremos brevemente.

Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados

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