Tribunais online: estamos à espera de quê?

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Entre 2000 e 2001, o atual primeiro-ministro António Costa, então ministro da Justiça, e a sua equipa governativa, Diogo Lacerda Machado e Eduardo Cabrita, desenharam e implementaram em tempo recorde um novo modelo de tribunais de proximidade, os julgados de paz, recuperando uma instituição histórica do nosso país, mas tornando-a apta a lidar com os litígios e o quotidiano das pessoas no início do século XXI.

Os julgados de paz, recorde-se, são tribunais, previstos pela Constituição (artigo 209), tribunais paralelos aos tribunais judiciais e aos tribunais arbitrais, com um corpo de juízes próprio, em exclusividade, e especialmente configurados para decidir conflitos de valor económico mais reduzido, mas que muitas vezes são aqueles que inquinam e perturbam decisivamente o quotidiano de muitos de nós. Em especial desde 2009, contudo, o abandono e a menorização institucional a que foram votados os julgados de paz, cuja expansão estava prevista para todo o território nacional, mas que nunca ultrapassaram o seu regime de funcionamento inicial, experimental e geograficamente circunscrito, têm sido notórios.

Parte dessa realidade deve-se às crises de capacidade de investimento público verificadas desde então. Outra parte deve-se seguramente ao menosprezo com que o sistema judicial tradicional olha esta "concorrência", o que tem contaminado a decisão política. Outra parte ainda deve-se ao modelo inicial desenhado e nunca alterado, em que as autarquias assumem uma parte relevante das responsabilidades na sua criação e no seu funcionamento, o que torna esta instituição dependente, na prática, do empenho direto de um autarca, bem como do interesse, mundividência, sentido de serviço público e capacidade financeira de uma autarquia concreta. E, finalmente, os julgados de paz, e os seus juízes de paz, optaram também por emular, no pior sentido possível, os procedimentos e os vícios dos tribunais judiciais, o que os tornou, por responsabilidade própria, cada vez mais formais, lentos e distantes do modelo original.

Ao pretenderem sentir-se e afirmar-se como "tribunais a sério", como se não o fossem antes, distanciando-se das pessoas, desde logo na sua linguagem e formalismo, conseguiram apenas tempos de decisão mais dilatados, acabar praticamente com os processos de mediação que organizavam e reduzir drasticamente o número de pessoas e de empresas que a eles recorriam, dada a maior celeridade e menores custos teoricamente associados.

Neste momento, na verdade, perante o estado de coisas atual, creio que há apenas duas possibilidades: a primeira é simplesmente a de acabar com esta realidade em desespero, quase sem processos e muito circunscrita, para mais, no nosso território - apenas uma minoria de concelhos dispõe de acesso a um julgado de paz - e, como tal, geradora de uma desigualdade de acesso à justiça dificilmente justificável; ou, em alternativa, reformar radicalmente os julgados de paz, no sentido de os tornar tribunais de pequenas causas de acesso e tramitação online, disponíveis para toda a população em território nacional, com um processo ainda mais simplificado, para pequenas causas cíveis, reduzindo de forma efetiva a conflitualidade e oferecendo um serviço de justiça a custo reduzido, sem necessariamente se constituir advogado e sem deslocações obrigatórias. E claro que aqui, para evitar uma exclusão tecnológica inadmissível, as autarquias e outros serviços públicos localmente distribuídos (desde logo, os tribunais judiciais e os serviços de registos, que estão em todo o território) deveriam também funcionar como portas de acesso a estes novos julgados de paz, para quem carecesse desse apoio tecnológico. Temos até hoje todas as ferramentas de apoio implementadas (cartão de cidadão, autenticações e chave móvel digital, videoconferência licenciada para os tribunais, etc.).

Queremos nós em 2021, duas décadas passadas e muita tecnologia entretanto incorporada no nosso quotidiano, mudar para melhor, de forma decisiva, este modelo de tribunais, bem-intencionado e potencialmente eficaz, mas entretanto ultrapassado? Queremos ter tribunais online a funcionar em Portugal, como noutros países, e resolver melhor os problemas dos cidadãos e das empresas, ou queremos apenas ir gerindo os serviços de justiça ao sabor da conveniência e da tranquilidade do que existe e dos profissionais do setor?

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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