Três movimentos cívicos, dois países: Argélia e Marrocos
Nesta semana celebram-se duas datas importantes para os movimentos cívicos na Argélia e em Marrocos. No dia 16 celebraram-se dois anos do Hirak, "movimento" argelino que surgiu em 2019 contra um quinto mandato presidencial de Abdelaziz Bouteflika. Objectivo atingido, estes movimentos inorgânicos tendem sempre a não perder o fôlego com assuntos paralelos que lhes permitem continuar a marcar a agenda e a arrastarem o foco mediático. No caso do Hirak, não necessitou de procurar no paralelo o assunto, já que contestou de imediato a solução proposta para a substituição do presidente (PR) Bouteflika, um histórico do FLN quatro vezes ministro e uma primeiro-ministro de Bouteflika. Percebeu a transição na continuidade e ficou de atalaia. Apesar de não se manifestar nas ruas desde março de 2020 devido à pandemia, este movimento caiu em cima do recém-eleito PR Abdelmadjid Tebboune quando em novembro último saíram os resultados do referendo à nova Constituição, com uma taxa de abstenção de 76%, prova para o Hirak, de que Tebboune não saíra legitimado do processo eleitoral que em dezembro de 2019 o tinha eleito com 58% dos votos. Esta postura tem-lhes permitido a crítica constante, saindo à rua a propósito da celebração do segundo aniversário, provando que ainda estão activos e mantendo o foco com slogans exigindo liberdade de expressão, imprensa livre e justiça. Muitos dos seus activistas foram sendo detidos e, nas redes sociais e agora de novo nas ruas, clamam por um Estado civil, insistindo na tecla de que o actual PR foi lá colocado pelos militares, que também acusam de terem hoje mais poder do que ontem.
É em Marrocos que as centenas de associações cívicas e de direitos humanos que durante a Primavera Árabe encontraram enquadramento federativo sob alçada da Associação Marroquina dos Direitos Humanos (AMDH), vulgo M-20Fev., recorreram a um "paralelo extensivo" de contestação, já que nunca reivindicaram o fim do regime, como na Tunísia ou no Egipto. Dez anos passados e a imprensa marroquina procura agora o "fio dessa meada" associativa federada pela AMDH e só encontra no M.A.L.I., o Mouvement Alternatif pour les Libertés Individuelles, animado pela incansável Ibtissam Betty Lachgar, alguma consistência e foco. Criativa e irreverente, Betty Lachgar tem demonstrado ser um verdadeiro desafio às autoridades locais. A 25 de Novembro de 2017 todas as fontes/repuxos de Rabat jorraram água vermelha, por ocasião do Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. No ano seguinte, em Dezembro, por ocasião da celebração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, lança a campanha Ma vulve m"appartient, contra o mito patriarcal da virgindade. Esta campanha iconoclasta da pureza e da virtude femininas, ganhou nova forma e força no São Valentim de domingo, contra o teste de virgindade a que todas as noivas marroquinas e por esse mundo islâmico estão sujeitas. No caso específico de Marrocos, sociedade em que o M.A.L.I. se insere, esta campanha pede o ab-rogação do Art.º 488 do Código Penal, que dispõe sobre a "defloração", impondo às mulheres penas pesadas em caso de perda de virgindade voluntária ou involuntária, incluindo os casos de violação.
O problema não se resolve por decreto, mas a história tem provado que as leis são o primeiro passo para a mudança das mentalidades.
Politólogo/arabista
www.maghreb-machrek.pt
Escreve de acordo com a antiga ortografia