Três apelos pela mobilidade

Há mais de um século que Portugal viu circular o seu primeiro automóvel. Estávamos em 1895, quando o IV Conde de Avilez, Jorge Avilez, o trouxe de Paris. Conta a história que, em boas estradas - na altura, raras ou inexistentes -, conseguia fazer uns 15 quilómetros hora.

Não imaginaria o Senhor Conde - nem quem o viu a passear-se neste modelo pioneiro da francesa Panhard & Levassor - que, quase 130 anos depois, Portugal tinha a circular cerca de 7 milhões de veículos ligeiros.

Muito menos imaginaria que a mobilidade teria hoje desafios, então completamente desconhecidos, como a sustentabilidade e a digitalização.

No entanto, hoje, são conceitos inseparáveis da mobilidade. E, como tal, sustentabilidade e digitalização não poderiam deixar de estar patentes no tema que escolhemos para esta Convenção... Assim como estão presentes, também, no mindset dos gestores da mais de centena e meia de associados e membros desta Associação que, no seu conjunto, são responsáveis pela aquisição de 24% dos ligeiros de passageiros vendidos anualmente em Portugal.

Esta relação entre mobilidade, sustentabilidade e digitalização - que é hoje transversal à nossa sociedade e à nossa economia - coloca-nos perante um conjunto de tendências e estímulos, alguns já instalados, outros novos e emergentes, a que, como país e como setor, precisamos de saber responder.

Quero, por isso, deixar nesta minha intervenção algumas pistas... ideias não exaustivas, que merecem, certamente, a nossa reflexão e debate...

Começo por uma mudança social ou geracional que, de há uns anos a esta parte, se mostra absolutamente transformadora para o nosso sector e para a ideia da mobilidade em geral.

Falo da desvalorização da posse em detrimento do uso - neste caso da posse de um carro - por parte das gerações mais jovens, na era pós internet ( geração Z e brevemente a geração alfa!), em particular nos centros urbanos.

Investir em carro próprio já não é, para muitos, uma prioridade ou sequer uma ideia a considerar.

Este novo paradigma, que valoriza a experiência ou a vivência em detrimento da posse, é um desafio e uma oportunidade única no sector do aluguer.

● A oferta articulada de diferentes tipos de veículos (permitindo, por exemplo, o aluguer de ligeiros, autocaravanas, motas e bicicletas numa mesma plataforma),

● A oferta integrada de veículos em pacotes turísticos agregados (bundles),

● Ou a partilha de viaturas alugadas (car-sharing mas também modelos de subscrição), que ganha cada vez mais adeptos, juntamente com a faculdade de acesso 24/7, de forma abolutamente keyless

são exemplos de soluções de flexibilidade que precisamos de aprofundar para dar resposta a este paradigma e a estas gerações, que são não o futuro, mas sim o presente!

Mas há um outro elemento que estas mesmas gerações não dispensam - a digitalização - e não se trata apenas de ir ao encontro das expectativas dos nativos digitais.

Excetuando uma pequena franja da população, que se torna cada vez mais um outlier para o setor à medida que os anos passam, a digitalização e desmaterialização são já transversais, uma realidade incontornável.

Considero que a digitalização e a desmaterialização são, à data, factores críticos de sucesso, mas que brevemente, passarão a factores higiénicos, indissociáveis do modelo de negócio de locação de veículos.

Um exemplo simples e recente, qb, a passagem do Fax para o mail: muitos ainda se recordarão das listagens de reservas recebidas por fax para serem carregadas nos então magnificos AS400 e afins e que hoje são automaticamente integradas, por exemplo via xml, nos sistemas de informação, agora absolutamente banalizados.

Assim será a digitalização dos processos associados a este sector, acompanhada da necessária transformação digital para o levar a cabo.

A desmaterialização dos processos de reserva e as aplicações que permitem gerir contas e alugueres em tempo real, onde quer que estejam os clientes e a partir de um qualquer tablet ou smartphone, são também já hoje uma realidade em absoluto.

Esta é a vertente mais visível, mais voltada para o exterior... Mas a transformação digital não se fica por aqui. Ela é decisiva também internamente, na análise de melhoria de procedimentos, na criação de automatismos, na agilização de tarefas e até na deteção de tendências e oportunidades emergentes (absolutamente data driven).

Basta estar atento à atuação de algumas empresas que têm liderado esta transição no setor de locação de viaturas sem condutor para encontrar exemplos que, há pouco tempo, pareciam absoluta ficção (Espaço 1999 para os que são da época).

Veja-se por exemplo a inspeção dos veículos (Check-in/Check-out) com soluções baseadas em imagens captadas por uma simples câmara de telemóvel e tratadas por um algoritmo, com apoio da inteligência artificial, efectuando de imediato a valorização dos danos de acordo com uma qualquer base de dados disponível comercialmente.

O tempo e a acuidade destas inspeções são incomparáveis face aos processos tradicionais, e muito mais competitivos... e absolutamente transparentes para o cliente.

Citando, Pedro Oliveira, dean da Nova SBE, tentar parar a tranformação digital neste sector é tão eficaz como tentar parar o vento com as mãos! (originalmente o Pedro referia-se ao Chat GPT).

Neste novo arquétipo em que atuamos, a sustentabilidade é outro tema obrigatório, até porque o setor dos transportes continua a ser um consumidor intensivo de energia, não reduzindo aqui, de forma alguma, o tema da sustentabilidade ao factor energia.

Os dados mais recentes, {relativos a 2020}, mostram, que mesmo em pandemia, com as restrições que todos conhecemos, o sector global dos transportes em Portugal foi responsável por mais de 32% do consumo final da energia e por 73,5% do consumo final dos produtos de petróleo.

A mobilidade sustentável é, por isso, inevitável, e a eletrificação uma referência que este sector já bem conhece.

A introdução de viaturas elétricas e híbridas nas frotas é também uma realidade para boa maioria dos membros e associados. O investimento foi e contínua a ser feito, mas há obstáculos, que sozinhos, não podemos ultrapassar.

A infraestrutura de carregamento - apesar de ter cerca de 6 mil pontos públicos - continua a ser a maior condicionante. É principalmente sentida nos concelhos mais carentes de população e de dinâmicas socioeconómicas, onde o turismo sustentável pode desempenhar um papel ainda mais relevante.

Mas em variadíssimos concelhos, até mesmo em alguns do litoral, o número de pontos de carregamento são muito limitados: casos há em que há 2 pontos de carregamento num concelho, e nem sempre estão a funcionar (fonte de dados: Mobi.e)

Enquanto um turista não conseguir recarregar a bateria do carro que alugou enquanto pernoita, para poder viajar no dia seguinte, o aluguer de veículos elétricos não avançará, indepenedentemente da sua autonomia, cada vez mais crescente, e os investimentos nestas frotas traduzem-se em muito pouco... Assim se trava o seu retorno para quem neles investiu, mas também o que se poderia gerar em toda a cadeia de valor do fabrico, nas externalidades, nomeadamente ao nível do turismo, e, claro, nas emissões... no ambiente, na redução da pegada de carbono.

Reforço! A extensão e capilaridade da rede pública e privada de carregamento é uma questão que não podemos resolver sozinhos... mas que precisa de soluções urgentes se queremos prosseguir efetivamente para as metas da transição energética e da descarbonização, e se queremos levar a economia e o turismo para onde mais falta fazem.

É certo que, como locadores de viaturas já levamos, todos os anos, milhares de pessoas a estas diferentes regiões. Na maioria são turistas estrangeiros, inbound, mas também cada vez mais portugueses que, sem rent-a-car, não visitariam montanhas e serras, aldeias históricas, praias fluviais, passadiços ... ou mesmo Património da Humanidade declarado pela Unesco!!!

É inegável, nesta perspetiva, a dinâmica que ajudamos a imprimir às economias locais, o valor que trazemos às exportações, ao PIB nacional...incluido os impostos associados à aquisição dos 24% de frota pelo qual somos responsáveis!

Um valor que, no entanto, encerra mais um desafio, que também não podemos solucionar sozinhos.

Refiro-me à alteração do regime de pagamento das portagens, que continua sem solução eficaz por parte do legislador, colocando sobre as rent-a-car o ónus e custo de um problema que nos é alheio.

A obrigatoriedade de assumirmos o papel de cobradores dos valores correspondentes ao uso das portagens por parte dos nossos clientes, implica que além da burocracia adicional a que estamos sujeitos, com a necessária criação de estruturas internas para suporte ao processo de cobrança, financiadas por nós, empresas privadas, exclusivamente através da margem do modelo de negócio previamente existente, tenhamos de assumir os valores não cobrados, também financiado por essa mesma margem, por definição reduzida (quando positiva).

E é muito simples obtermos valores incobráveis correspondentes a utilização de troços portajados: basta que o aluguer seja efectuado a um cliente inbound, que fez vários trajectos durante o seu peródo de aluguer, mas cuja informação nos chega de algum concecionário, 1 dia depois de a vitura ter sido devolvida. A probabilidade de um incobrável é enorme - aumenta a pressão sobre a tesouraria, alimentamos a burocracia e por fim perdemos esse valor.

Também aqui a transformação digital se impõe: para este processo funcionar, a informação deve ser em tempo real, de outra forma vai ser sempre uma espécie de roleta russa das portagens!

Como locadores, desenvolvemos soluções que minoram este problema. Mas não podemos obrigar os clientes a subscrevê-las nem controlar onde vão, pelo que esta é mais uma questão premente, a precisar de resolução.

Têm sido inúmeras as interações da ARAC com as entidades competentes, e com a generalidade do ecossistema afecta a este tema. Continuamos, confesso que já a ficar impacientes pelo tempo volvido, a aguardar resposta.

A recuperar de uma pandemia, com uma guerra no leste da Europa, a viver num ciclo de elevada inflação, as exigências e desafios do setor multiplicam-se.

Por isso, termino com três apelos:

- O primeiro, é que saibamos, neste e noutros fóruns, juntamente com setores parceiros, traçar caminhos para evoluir e consolidar esta indústria essencial para um país em que o turismo representa uns 8% do PIB e que tem nas suas empresas relevantes agentes de dinamização turística e rural.

- O segundo, é que as entidades legisladoras e reguladoras compreendam as incoerências com que a nossa atividade se vê confrontada, corrigindo-as para que possamos dedicar-nos aos desafios dos nossos modelos de negócio, sem o ónus de obrigações alheias que penalizam o nosso desempenho.

- E o terceiro é um apelo, para que exista de facto um empenho efetivo em tornar acessíveis às empresas as verbas do PRR, sendo este um catalizador da transição digital e eléctrica, em empresas de todas as dimensões no sector de Locação de Veículos Sem Condutor.

*presidente do conselho director da ARAC - Associação Nacional dos Locadores de Veículos

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