Transformação Digital e iResponsabilidade Social

O impacto das tecnologias da informação na sociedade é claramente impressionante. Mas será que nós, utilizadores e cidadãos, estamos a usufruir qualitativamente do seu potencial?

A vulgarização, nos anos 80, do computador pessoal e do software de produtividade pessoal veio permitir ao comum cidadão usufruir de tecnologias até então restritas a elites ou a grandes organizações empresariais ou científicas.

O mais icónico momento de afirmação da revolução informática terá sido a estreia, no Super Bowl de 1984, do anúncio "1984" realizado por Ridley Scott, diretor de "Alien" e "Blade Runner", para assinalar o lançamento do primeiro Mac. Num flash alegórico de exatamente um minuto, o clip avançava a perspetiva colorida de um futuro em que a tecnologia traria à humanidade promessas de liberdade, não de controle, e de flexibilidade e inovação, não de normalização burocrática. Simultaneamente, explorava a imagem de "Big Brother", do "1984" de Orwell, associando-a de forma subliminar à famosa "Big Blue" IBM, que representaria o conservadorismo e a burocracia tecnológica, e que uma nova visão de inovação informática, centrada nas pessoas, viria superar.

Atualmente, após a universalização da internet e das comunicações móveis, o acesso às plataformas informáticas tornou-se um facto adquirido em todas as áreas da sociedade. Mesmo tendo em conta os inevitáveis usos perversos da tecnologia, assistimos ao maior impulso de progresso na história da humanidade desde a revolução industrial.

É assim paradoxal que, apesar de honrosas exceções que merecem ser ressalvadas, se assista ainda a inegáveis retrocessos na qualidade dos serviços prestados ao cidadão, a níveis bem abaixo das expectativas normais décadas atrás, quando as tecnologias atuais não existiam ou eram bastante mais primitivas.

A face mais recente da revolução informática é a chamada "transformação digital", que visa explorar o digital e a internet de forma pervasiva na operação das organizações, em particular, na sua relação com os seus clientes e utilizadores, promovendo a desmaterialização de processos, e certas mudanças culturais e de "enquadramento mental" portadoras de benefícios para todos os agentes. No entanto, os processos de transformação digital envolvem grandes investimentos de lançamento e manutenção, tornando difícil equilibrar as proclamadas intenções de prestação de melhores serviços coma necessidade de reduzir os custos de operação, o que pode resultar em desfavor do consumidor final.

A relação entre utentes e serviços não deve ser atropelada por sistemas e processos informáticos mal concebidos ou de acessibilidade deficiente, que recaem abruptamente e sem aviso prévio sobre o cidadão-utilizador. Justificações de "erro informático", "sistema em baixo", "o sistema não permite "são lugares comuns que, infelizmente passam mensagens erradas de inimputabilidade, de uma "normalidade" próprias das tecnologias, e para as quais há que ter paciência.

Para além de questões de instabilidade, muitos sistemas de grande público e suas interfaces são de utilização muito pouco natural. Poucos exploram metáforas intuitivas de interação, que suportem uma amigável virtualização de um familiar balcão de atendimento. O utilizador é obrigado a navegar por sites web labirínticos e burocráticos, de estética duvidosa, que o tratam de forma indiferenciada. E que frequentemente o voluntariam a realizar "trabalho extraordinário"; tornando-o peça do sistema cujo objetivo seria servi-lo.

Já sem falar dos anacrónicos e inconclusivos processos de ajuda on-line, os "doom-loop" que até inspiram a criação de empresas especializadas em auxiliar cidadãos desesperados.

É verdade que a utilização das tecnologias requer conhecimentos específicos. Mas não confundamos a literacia digital básica que qualquer cidadão deve possuir com a ginástica necessária para dominar sistemas mal concebidos. É a tecnologia que tem que apresentar uma interface o mais amigável possível com o cidadão. É importante que os sistemas de grande público não amplifiquem a exclusão social, em particular dos seniores ativos, que deveriam poder usufruir dos serviços comuns sem depender de terceiros.

Também no interior das próprias organizações se encontram elevados graus de insatisfação relativamente à operação dos sistemas informáticos. Nos sistemas de saúde, na justiça, na educação, e mesmo em muitas empresas, encontramos ambientes muito longe do que a moderna engenharia de software e de interação pessoa-máquina permitiria oferecer aos colaboradores. Não há razão para que tecnologias disponíveis, como as necessárias ao sucesso comercial e excelência técnica de um jogo de computador, fiquem esquecidas na fiabilidade, visual e coerência operacional de um serviço de grande público.

As organizações sabem que mais competitivas serão quanto mais acessíveis, simples de usar e robustos forem os seus serviços digitais. Também caberá ao regulador e legislador pugnar pela qualidade social e cívica do acesso aos serviços públicos e comerciais digitais.

A transformação digital deve ser acompanhada de inovação constante que promova uma tecnologia ao serviço das pessoas, eliminando instabilidades e obstáculos à acessibilidade e inclusão. Este é um compromisso de progresso, que deve ser assumido como responsabilidade social das organizações na sociedade digital.

Luís Caires, Diretor do NOVA Laboratory for ComputerScience and Informatics | FCT NOVA

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