Torres de marfim
Poetry makes nothing happen
(W.H. Auden)
Por muito que sejamos gregários e solidários, o ofício de escrever abre-nos um espaço de solidão, que é difícil de transpor.
Não deixo de seguir com emoção e, até, implicação, os assuntos correntes: adiro racionalmente às “linhas vermelhas” do PS para o Orçamento, porque perder a identidade social democrata face à hegemonia liberal parece-me um mau serviço que o PS prestaria à democracia, que é feita de confrontos e alternâncias; mas a possibilidade de ter o Chega como árbitro da governação preocupa-me tanto como vir a tê-lo como única e exclusiva força de oposição. Tendo assim a pensar que foi positivo o recuo do PSD em matéria fiscal, que abriu condições para um compromisso com o PS sobre o Orçamento. Vivo no dia a dia as minhas próprias contradições e não tenho que prestar conta delas, porque estou retirado, mas tenho direito a exprimi-las, porque estou vivo.
A situação internacional revela-se explosiva. E esse caráter explosivo poderá vir a traduzir-se, mais facilmente do que nunca, em reais explosões de armas nucleares. Mas que podemos nós fazer? Giraudoux escreveu, pouco antes de eclodir a Segunda Grande Guerra, uma peça chamada A Guerra de Tróia não terá lugar, o que hoje pode ser lido como um wishful thinking ou como uma pesada ironia. Podemos fazer como eles, nada. Ou, seguindo o conselho de Manuel Bandeira, tocar um tango argentino e cito o poema:
PNEUMOTÓRAX
Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.
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— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Olhando para a situação internacional, começo a pensar que não há quaisquer soluções razoáveis na mesa e que o pior parece o mais seguro. Vamos, pois, tocar um tango argentino...
Hoje o doente de Manuel Bandeira teria a cura mais provável. Mas a racionalidade que nos poupou ao caos nuclear durante a Guerra Fria parece ter-se desfeito com a multipolaridade atual do mundo.
Escrever não é refugiar-se numa torre de marfim, mas também não é proclamar, como o revolucionário Shelley, os poetas como legisladores da Humanidade. No computador onde escrevo estas e outras linhas vêm assomar constantemente pop-ups com as últimas notícias e em geral são todas más, com a única excepção das vitórias do Sporting. A torre de marfim é impossível neste mundo digital em que hoje vivemos.
Desde os massacres, cada vez em maior escala, no Médio Oriente, ao assassinato incompreensível de um simpático barbeiro na Penha de França, a violência acompanha os nossos dias a uma escala e com uma presença, que era dantes mais mitigada e apresentada com maior síntese, mas que hoje nos entra, com toda a sua brutalidade, pela casa dentro. Ver crianças a ser assassinadas todos os dias em ruínas de cidades bombardeadas não nos torna melhores nem piores, apenas consolida a carapaça defensiva da nossa sensibilidade. E as violências dos crimes comuns que sempre existiram, tão ampliadas agora na informação que recebemos, fazem-nos partilhar um medo difuso e uma insegurança, que vão bem além do justificável.
Mas nós, pelo nosso lado, sem torres nem marfins, continuamos a escrever poesia, a enviar os nossos livros aos editores e a esperar vê-los nas livrarias, mesmo que não abundem os leitores. “Bom qu’ à ça” respondeu um dia Samuel Beckett à pergunta “porque escreve?”, que lhe fora feita por um jornal francês.
A poesia não pode nada? Pode pelo menos vir pôr tudo em questão dentro das nossas cabecinhas... Essa é a resistência da poesia, a sua força de atrição, a sua atenção ao mundo. É isto que a poesia pode fazer acontecer!
Talvez haja mais coisas a fazer afinal do que tocar um tango argentino...