Timor, Timor, Timor

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Timor ressurge das águas,
Praia futura invocada.

Ruy Cinatti
(1915-1986) 

Na obra de José Saramago, há uma personagem inspiradora que me acompanha: Blimunda, companheira de Baltazar, tem o poder de ver as vontades no interior de cada um e as juntar para uma obra maior. É assim que a Passarola de Frei Bartolomeu de Gusmão consegue voar no Memorial do Convento.

Como bem sabemos, é uma árdua tarefa reunir vontades e fazer delas, nas suas diferenças, uma força inesperada. Timor-Leste - país, gentes, tradições - é bem o símbolo de uma inabalável resistência para a qual muitas vontades, individuais e coletivas, contribuíram. Recordo o dia do referendo que decidiu a independência e como todo um povo enfrentou o medo, apesar da violência, das mortes, da destruição.

Nesse ano de 1999, eu vivia em Macau onde muitos timorenses se haviam exilado e apoiavam a luta pelo seu país. Quando o referendo teve data, foi pedido à organização em que trabalhava Cursos de Português para os timorenses: essa havia sido a língua da Resistência e seria a língua que queriam reconstruir no novo país, a par das línguas nacionais.

Portugal desempenhou um papel exemplar e rapidamente abriu a sua Missão Diplomática com meios mais do que exíguos. Timor independente era um lugar de desolação: casas queimadas, estradas destruídas, colheitas devastadas, aeroporto inoperacional.

Foi assim que cheguei a Dili em março de 2000 com a tarefa de instalar um Centro de Língua Portuguesa. O pedido vinha das autoridades, que consideravam o Português a língua de coesão nacional, como havia sido a língua de código da guerrilha na luta contra o invasor.

Mesmo na Missão Diplomática, tínhamos de dormir no chão e havia apenas uma longa mesa que servia para comer, trabalhar, reunir. Ainda em Macau, perguntámos o que poderia ser mais urgente e pediram-nos (além de pás e vassouras) fotocopiadoras pequenas e papel.

Dili praticamente não tinha casas e as pessoas passavam os dias a tentar limpar o que havia sobrado da fúria incendiária. Contudo, já existia uma espécie de restaurante frequentado pelos muitos expatriados a chegar que literalmente se denominava “Casa Queimada”.

O primeiro encontro para avançar com o projeto para reintroduzir o Português (proibido desde a invasão indonésia) foi com o padre João Felgueiras (que este ano completou 103 anos) e aí aprendi quase tudo sobre a capacidade humana de fazer milagres.

Com a energia que ainda hoje transparece, o padre Felgueiras recolhera os deslocados (grande parte dos timorenses) no adro das igrejas e aí passavam o tempo a rezar em português: a memória que lhes ficara. Fizemos cópias das orações e a partir delas começaram as aulas que significavam, ao mesmo tempo, um regresso à identidade e uma cadeia solidária.

Comemorar 25 anos de independência é celebrar a vida e a capacidade de resistir e acreditar. Para um povo crente como são os timorenses, a viagem do Papa Francisco é uma merecida dádiva.

Como Ruy Cinatti antes do tempo entendeu, Timor foi capaz de ressurgir das águas e constrói pouco a pouco o seu futuro

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