Thatcher viu – e avisou – como a UE se tornaria um 'monstro' burocrático

Do alerta em Bruges à realidade de hoje: integração sem ‘demos’, regulação sem pluralismo
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Sem um demos comum, a integração tende a fazer‑se pelo regulamento. Este é o fio que liga o alerta de Margaret Thatcher em Bruges à perceção, hoje, de uma União que administra mais do que mobiliza. Em 1988, Thatcher celebrou a Europa enquanto pluralidade – “França como França, Espanha como Espanha, Grã‑Bretanha como Grã‑Bretanha”, disse – e advertiu contra a tentativa de moldar um “super‑Estado” por cima de histórias e instituições nacionais díspares, seculares. O que estava em causa não era anti‑europeísmo (como a acusaram), mas a fonte da legitimidade: sem um povo europeu partilhado, um governo europeu forte arrisca nascer do aparelho, não do voto.

A década seguinte cristalizou a questão institucional. Quando Jacques Delors apresentou a arquitetura em que o Parlamento seria o corpo democrático, a Comissão o executivo e o Conselho o senado dos Estados, Thatcher respondeu com o célebre “No. No. No.” – numa intervenção na Câmara dos Comuns em 1990. Foi aí que usou pela primeira vez a metáfora do Politburo para se referir à Comissão Europeia, alertando para o risco de um centro de poder supranacional com iniciativa política própria, mas sem legitimidade democrática direta nem diversidade institucional. Ao dizê-lo, não apontava para tirania, mas para o perigo de um organismo que decide longe de um demos que possa responsabilizar ou criar alternativa no organismo que vai tomar decisões quanto ao seu futuro. O “No. No. No” não era uma recusa de cooperação; era a recusa de um diretório supranacional que, sem um povo europeu partilhado, arriscava nascer do aparelho, não do voto.

Três décadas depois, a trajetória da União parece, para muitos, seguir essa linha. A regulação tornou‑se o motor da integração: do GDPR ao Green Deal, passando pelo DSA/DMA (Digital Services Act/Digital Markets Act) e, agora, pela polémica proposta “Chat Control” – sobre a qual escrevi detalhadamente neste espaço na semana passada – e que é vista por críticos como ameaça à privacidade e à encriptação de todas as mensagens privadas.

Crises como a do euro ou a pandemia reforçaram o papel de órgãos tecnocráticos – BCE, Eurogrupo, Comissão Europeia – em detrimento do escrutínio direto do eleitor.

E enquanto as decisões executivas e legislativas cabem à Comissão Europeia, um organismo cujo défice democrático era criticado há décadas, no Parlamento Europeu, o equivalente a uma grande coligação centrista assegura estabilidade (independentemente das picardias para 'inglês ver') mas também continuidade programática, alimentando a perceção de “pensamento único” que todas as medidas ali aprovadas acabam por ter. A reação manifesta‑se no crescimento de forças eurocéticas e nacionalistas, que exploram a distância entre decisões de Bruxelas e realidades nacionais – além, claro está, de povos fartos de décadas de incapacidade, incompetência ou simplesmente teima em ideologias nadas‑mortas dos seus governos.

Para Thatcher, aparelhos administram; povos mobilizam. A Europa, que no virar do milénio era celebrada como um “oásis liberal”, centro de inovação e crescimento, arrisca hoje perder esse estatuto – se é que já não o perdeu – se não reencontrar pluralismo e devolver ao cidadão a capacidade de escolher e responsabilizar quem decide. A fatura da inércia do diretório está a chegar – e não será pequena.

A questão, portanto, não é escolher entre uma Europa tecnocrática e Estados isolados. É saber se a União consegue recentrar a legitimidade, devolvendo mais escolha substantiva ao eleitor europeu e mais responsabilidade visível a quem decide – e, ao mesmo tempo, reabrir margens à diversidade dentro de regras comuns. Isso implica repensar a iniciativa política da Comissão, reforçar a accountability do Parlamento Europeu sem amputar o papel do Conselho, e calibrar a integração por regulação para privilegiar objetivos e resultados, não microrroteiros que tratam realidades diferentes como iguais.

O mérito do alerta de Thatcher não esteve em negar a utilidade da integração, mas em enunciar uma lei de movimento: se a união não nascer de um demos partilhado, nascerá de um aparelho. Aparelhos administram; raramente entusiasmam. Quando a administração pretende substituir a política, a política regressa pela porta que conhece – a nacional. Esta é a fatura que a Europa está a tentar pagar. A escolha que tem pela frente não é entre mais Europa ou menos Europa, mas entre uma Europa que volta a convencer pela liberdade e pluralismo ou uma Europa que continua a governar pela inércia do diretório.

Se continuar a governar pela inércia do diretório, esta Europa – marcada por centralismo excessivo e défice de legitimidade – arrisca um destino não muito diferente do da velha União Soviética: colapso por falta de adesão democrática.

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