Testemunho numa Urgência do SNS
O SNS faz, todos os dias, cerca de 17.000 atendimentos nas suas Urgências! Inevitável. Um dia passaremos muitas horas numa Urgência do SNS.
1. Dois espaços contrastantes
Nas Urgências coexistem dois espaços distintos: Um espaço-público-esquecido na sala de espera; um território “profissional-de-aconchego”, do outro lado da porta da espera.
O espaço de espera é público no sentido mais elevado do termo. Estamos lá todos. Metade têm sinais de quem vive com dificuldades. Mas ali somos todos iguais. Arroupados pela preocupação carinhosa dos acompanhantes-familiares. Valemos a cor da fita que trazemos no pulso. Trocam-se olhares discretos. Empáticos. Interrogando-se. Estamos todos à espera, algo perdidos entre a ansiedade e cansaço. O espaço de espera é limpo, exíguo, não-cuidado e afetivamente abandonado. As cadeiras são desnecessariamente desconfortáveis. A porta da rua abre de 3 em 3 minutos, sai-entra gente e com ela frio, muito frio.
Mas do outro lado da porta-da-rua, está a entrada de um espaço profissional de aconchego. Profissionais, na sua grande maioria jovens, e alguns mais experientes, acolhem, ouvem, cuidam e aconchegam. Médicos, enfermeiros e outros profissionais dedicados, trabalhando em horas impróprias, enquanto o resto do mundo repousa. Aqui, salvam-se vidas e sossegam-se outras.
Passa uma cama rolante, e quem a empurra fala amigavelmente, consolando uma mulher muito idosa e queixosa: “Nem pense nisso, ainda cá vai estar aquando da 4ª Grande Guerra Mundial...”.
2. Com um esforço ao nosso alcance, é possível fazer melhor
E, no entanto, é bem possível articular efetivamente aqueles dois territórios que coexistem nas Urgências do SNS. Pelo menos de duas maneiras. Dotar o espaço público com aquilo que precisa – conforto, mesmo que austero, o toque afetuoso próprio da arte de cuidar e informação útil. E depois, alguém que lá apreça periodicamente, solicito, interessado, pronto a corrigir imperfeições e omissões, ouvindo, explicando e intervindo porventura em esperas mais difíceis de entender. Prolongando a solicitude do espaço profissional para um espaço público delicado, em sofrimento. Não custa muito a fazer e fará muito bem a quem, doente e carente, espera a sua vez.
Desta forma, todos perceberíamos melhor a falta que o nosso SNS nos fará, quando, porventura, acabarem por arrendar o seu património. Em vez de ideias que desanimam, criem-se antes as condições necessárias para que mais profissionais de saúde nos possam assim cuidar, nos inevitáveis momentos de aflição.
3. De volta a casa...
Das Urgências, fica-se ou tem-se alta.
De alta, chega-se a casa, 10 horas passadas, ainda aturdidos, mas também agradecidos.
E não se resiste à tentação, antes de adormecer longamente no sofá, de espreitar como vai, entretanto, este nosso mundo. Dois toques incautos e a Televisão inundam-nos a sala. Um desconsolo, maior dor do que as picadas e os adesivos das Urgências, é observar mais um espaço público em incumprimento – o desrespeito, em demasiadas Televisões, pela obrigação de tratar, por igual, todos os pontos de vista sobre um futuro democraticamente reforçado para o país.
Um último pensamento, agora mais adocicado, percorre a consciência, antes de desligar-se. A ideia de um filósofo eloquente: “A esperança é uma terna audácia que desponta sobre a torrente da desesperança, aí onde o seu rugido é mais selvagem e perigoso” …
Professor catedrático jubilado de políticas de saúde