Terna é a noite

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Na azáfama quotidiana, a gente já nem repara: no coração de Lisboa, mesmo ao centro da cidade, mataram um hipopótamo. Quem passar pelo Marquês, subindo a António Augusto de Aguiar, faça o favor de notar: ao nº 3-A, o reclame luminoso do lendário night club foi vilmente apedrejado, e agora está escavacado, todo partido, uma tristeza. A casa continua aberta, garante o seu website ("Venha passar o seu serão na melhor companhia e dançar ao som de boa música. Connosco a sua noite vai ser inesquecível"), só encerrando aos domingos, para descanso do pessoal. Já o néon flamejante, com um hipo sorridente, de jóias aos pés e ao pescoço, encontra-se em perigo urgente, pedindo o auxílio premente de uma dupla-maravilha, a Rita Múrias e o Paulo Barata, beneméritos que, desde há vários anos, empreendem uma acção notabilíssima de resgate dos reclames feéricos da Lisboa de outrora. De quando em vez, a Rita e o Paulo expõem os tesouros que encontraram, coisas fulgurantes, gigantes - não percam!

Nunca percebi por que razão escolheram dar nomes de bichos aos cabarés da cidade. Graças a isso, numa piada estafada, os militantes noctívagos, quando saíam de casa, gostavam de dizer que iam dar... uma volta ao zoológico. E, na verdade, a par do Hipópotamo, havia um Elefante Branco, que ainda existe e com viço, e uma Cova da Onça, da qual hoje não resta mais do que um fugaz apontamento na calçada da Avenida da Liberdade, quase a chegar à Rotunda. Memórias que se vão extinguindo, dizer ser lei da vida, como esta lembrança singela, enternecedora: um dos mortos pela PIDE na António Maria Cardoso, no dia 25 de Abril de 1974, era empregado de mesa na Cova da Onça. Chamava-se Fernando Carvalho Giesteira, nasceu em 1955 em Salto, Montalegre. Ainda jovem, muito jovem, fora viver para Vreia de Jales, Vila Pouca de Aguiar, e em 1972 veio para Lisboa, a Cova da Onça. Na madrugada de 24, depois de fechada a boate, rumou ao Chiado, ver a confusão. Acabou baleado e morto, tinha 18 anos, a mais jovem das vítimas do dia da revolução.

Quando olhamos para trás, do que foi a nossa vida, sobretudo a juventude, é a noite que lembramos. Muito mais do que o dia, é ela que convoca e mobiliza as memórias de uma vivência-outra, que foi a nossa, mas já não é. Quando folheamos o maravilhoso Lisboa Cliché, fotografias de Daniel Blaufuks da Lisboa dos Anos 80, o que encontramos são cenas e rostos nocturnos, alguns deles conhecidos, todos hoje envelhecidos. Naquelas imagens do Bairro Alto ecoa enorme inocência, própria da juventude e da festa, da saudável inconsciência sobre o devir do futuro, típica de quem é novo. Fotos que recobrem também, e dissimulam, a tristeza pegada do que eram as noites naquela época, sobretudo para quem não tinha acesso ao Frágil ou a outras casas da moda. Da mesma maneira que, de um modo geral, recordamos a nossa juventude como um tempo melhor do que ele realmente foi, tendemos a julgar que o passado era mais feliz do que presente: no que à noite tange, julga-se que ela era menos viciosa e perigosa do que a da agora, mais sadia e bondosa, mais jovial e alegre, inocente e terna.

Porém, quem se der ao prazeroso trabalho de ler a imprensa do século XIX, um vício a que regularmente me entrego e que é fácil e gratuitamente acessível na Net, encontrará uma realidade bem diferente daquela figuração nostálgica e delicodoce. Para não falarmos sempre da miséria da prostituição feminina e do fado, pensemos, por exemplo, na perseguição aos homossexuais. Em 1881, num episódio escabroso que terá inspirado O Barão de Lavos, de Abel Botelho, a polícia de Lisboa surpreendeu o 2º marquês de Valada, José de Meneses e Távora Rappach da Silveira e Castro, membro do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, par do Reino e oficial-mor da Casa Real, em atitudes comprometedoras com um soldado-raso, "preso ainda em constrangida descompostura de traje" na Travessa da Espera, ao Bairro Alto, não longe do Frágil das fotos de Daniel Blaufuks. Rebentado o escândalo, o marquês teve de renunciar ao cargo que então exercia, o de vice-governador civil de Lisboa, havendo suspeitas de que a denúncia dos seus vícios, há muito falada por toda a cidade, fora feita pelo próprio governador civil, António Arrobas, por pura rivalidade política. Cinco anos depois, em Julho de 1886, estalava o Caso Trombeta, quando dois jovens rapazes, filhos de acrobatas brasileiros em tournée por Lisboa, foram sequestrados e tratados como escravos sexuais na Rua do Trombeta, também ao Bairro Alto. No mesmo ano de 1886, o alferes Marinho da Cruz assassinava um militar seu amante, sendo condenado a prisão seguida de degredo, após a defesa e a psiquiatria forense terem alegado, sem sucesso, a sua inimputabilidade com base no diagnóstico de "epilepsia larvada".

Além das rusgas que a polícia regularmente fazia em busca de "borboletas", nos jornais surgiam notícias de bordéis com "camareiras" do sexo masculino, como um situado no nº 120 da Rua do Poço dos Negros, onde serviam personagens com nomes como "a Vasculho dos Urinóis", "a Mulata dos Camarões", "a Tentadora", "a Gorda de São Paulo", "a Badalhoca", e outro no nº 172 da Rua do Arco da Bandeira, perto do Animatógrafo.

Médicos e criminólogos, repórteres de escândalos, chefes de família alarmados confrontaram-se com uma sucessão inaudita de casos de "amor anómalo", como lhes chamavam, que ora descreviam com nomes e factos, ora resguardavam sob o manto do anonimato, falando tão-só de um "jusperito notável, o Visconde de X.", que vinha regularmente do Alentejo a Lisboa para se satisfazer as "exigências pecaminosas da carnalidade" com rapazes de mau porte que acabaram por lhe furtar um valioso relógio de oiro, ou de um "ajudante de campo de D. Luís", ou ainda de um "certo par do Reino, com a reputação de lídimo carácter", para usar as expressões de Arlindo Monteiro na obra Amor Sáfico e Socrático, de 1922, a qual refere também um "catedrático de Coimbra e reitor de um liceu do Porto" e um "lente de escola superior, o conde de C. B.", os quais não hesitavam entregar-se à "volúpia órfica" com um travesti de nome "A Gata", um homossexual contumaz de alcunha "O Manuelinho" ou com um sem-fim de efebos, a que na gíria de Lisboa chamavam "as Adelaides".

Ainda que também surjam nomes de outras camadas socio-profissionais (ex.: um corneteiro da guarnição de Coimbra, homossexual activo, citado por Júlio de Matos em A Loucura, de 1889), o vício e o escândalo pareciam afectar, em especial, os estratos mais elevados da sociedade ou, como notou Arlindo Monteiro: "O depoimento de pessoa de maior probidade que, no desempenho do seu alto cargo oficial, tem assistido ao desenrolar da corrupção em Lisboa, permite-me afirmar que elementos das esferas elevadas da sociedade na capital, destacando-se pela suas posições honoríficas, grau de cultura e educação, têm partilhado da mal-aventurada paixão helénica."

Na Galeria dos Criminosos Célebres, uma publicação quinzenal saída entre 1886 e 1908, o médico e antropólogo Ferraz de Macedo dava à estampa um ensaio sobre os "sodomitas", sobre os quais dizia: "Podem ter a denominação de criaturas humanas de aspecto, mas são de um psiquismo menos do que bestial". Os homossexuais eram, nas suas palavras, uma "seita degradante", "entidades humanas de constituição simiana", que "transitam com movimentos aperreados, deixando nos pontos em que estacionam o rasto das suas individualidades nojentas, como os moluscos deixam a gosma por onde passam."

Bastariam barbaridades com estas para concluirmos que, para os homossexuais, pelo menos, a noite de outrora era infinitamente mais dolorosa e perigosa do que a noite de agora (resta saber se para outros, como os trans-sexuais ou os migrantes, a noite de hoje não continuará a ser tão perigosa como o era há 30, 50 ou mais anos).

Numa interessantíssima tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2016, Rosa Maria Fina estudou a ideia de noite na cultura portuguesa nos últimos 200 anos.

[Um parêntesis: há coisas que não se compreendem, e uma delas é por que é que um trabalho destes, ao que sei, não foi ainda editado em livro, permanecendo perdido num limbo digital, onde o encontrei e resgatei por acaso. Quer dizer, o Estado financia os doutoramentos, concede bolsas, apoios a teses e depois elas não são disponibilizadas em livro para desfrute e uso do país e dos cidadãos, que as pagaram com os seus impostos; é certo que a FCT concede já alguns subsídios à edição das teses, mas é necessário que as imprensas das universidades, que as há e são boas, façam mais, muito mais, sobretudo no campo da distribuição e da divulgação, para benefício de todos.]

Em Portugal nocturno e a ameaça do dia. A ideia de noite na cultura portuguesa (séculos XVIII a XX), assim se chama a dissertação de Rosa Maria Fina, percebemos que, desde o tempo das Luzes, o poder do Estado foi mobilizado para combater as trevas da noite e os medos a ela associados: da iluminação pública de Pina Manique, às medidas de policiamento da Monarquia liberal (estudadas num livro notável, acabado de sair, Fardados de Azul, de Gonçalo Rocha Gonçalves) muito se fez para combater o escuro e para garantir a tranquilidade e a segurança da nova ordem burguesa, laboriosa e diurna. A disciplina dos corpos, de que falou Foucault a propósito das prisões e dos hospícios, estendeu-se aos ritmos de trabalho e de descanso, com a ociosidade nocturna regrada por rigorosos horários de abertura e de fecho e por uma moral que dizia ser de "mau tom" vaguear-se pelas ruas madrugada adentro. Assim, a noite tornou-se, ou tornou-se ainda mais, um território de suma ambivalência, suscitando, por um lado, o medo e o irracional, o pavor atávico dos lobos e das feras, e sendo, por outro lado, refúgio e pretexto para transgressões de vária ordem, das mais inocentes boémia aos mais abomináveis crimes.

Talvez tenhamos mudado e, no passado, talvez vivêssemos a noite de uma forma diferente. Um dos orientadores da tese de Rosa Maria foi Roger Erkich, um historiador americano, professor na Universidade Virginia Tech, que tem andado a investigar a fundo como eram a noite e os padrões de sono na idade pré-Revolução Industrial. É autor de um clássico, At Day"s Close: Night in Times Past, de 2005, já traduzido para francês (La Grande Transformation du Sommeil: Comment la Revolution Industrielle a Boulversé Nos Nuits, de 2021), que não li, mas li a entrevista que recentemente concedeu a Diogo Vaz Pinto, saída no último número da revista Electra (nº 19, Inverno de 2022).

Há uns anos, ao vasculhar os arquivos de Londres, o professor Erkich tropeçou num relatório criminal intrigante, do século XVII, que falava em "primeiro sono" e em "segundo sono", expressão que depois encontraria em muitos outros documentos e testemunhos, o que o levou à conclusão de que, antes da Revolução Industrial, o sono era predominantemente bifásico ou, se preferimos, bifurcado ou bimodal, em contraste com o sono polifásico, em que dormimos aos bochechos e pedaços, e com o sono monofásico, todo de uma vez só, como agora praticamos. Já Locke dizia que "todos os homens dormem por intervalos" ("all men sleep by intervals") e, antes dele, Ramon Llull tinha falado do "primeiro sono", o "primo sonno" que ia até às primeiras horas da madrugada, diz-nos Tiffany Francis-Baker em Dark Skies, A Journey Into the Wild Night (Bloomsbury, 2020), um dos livros mais encantadores que conheço sobre a poesia e os dramas da noite. Foi lá que conheci uma experiência levada a cabo nos anos 1990 pelo Dr. Thomas Wehr, que analisou a "fotoperiodicidade humana", ou seja, o tempo e o modo como lidamos com a luz e o escuro. Colocadas sob certas condições, as cobaias humanas do Dr. Wehr adoptaram geralmente um duplo padrão de sono, dividido em dois blocos, tal qual como se fazia até ao século XIX, o que talvez comprove que esse regime será, porventura, mais natural e biologicamente mais sadio do que o actual modelo de sono em jornada contínua.

Simplesmente, dividir o sono em duas tranches, ou mais, parece-nos hoje heresia, um crime contranatura, lesivo dos ritmos circadianos essenciais ao bem-estar de corpo e mente. Por isso, e muito bem, as jornadas laborais nocturnas têm regime jurídico próprio, mais pausado e, espera-se, mais bem remunerado. E patrão que diga a operário que deve trabalhar e dormir por turnos, impondo-lhe sono bifásico, terá boas contas a ajustar com as autoridades inspectivas, se as houver. Todos têm o inalienável direito ao merecido descanso, à doçura ronronante de um acordar satisfeito, que Toulouse-Lautrec captou como ninguém na maravilhosa tela Le Lit/A Cama, pintada por volta de 1892 e hoje exposta no Museu d"Orsay.

Resta saber, no entanto, se, com o actual padrão monofásico, do sono por empreitada, dormiremos realmente melhor do que os nossos antepassados. Para aqueles que ainda não adormeceram a meio deste texto, prossegue-se dizendo o seguinte: num estudo realizado em 2021 pela Associação Portuguesa do Sono, em conjunto com o CINEICC - Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental, da Universidade de Coimbra, concluiu-se que o sono dos portugueses piorou, e muito, durante a pandemia, sobretudo para as mulheres, para os estudantes e para os cuidadores informais. Durante o primeiro confinamento, 45,7% dos inquiridos disseram que o seu sono piorou, com insónias, pesadelos, noites em claro. Pior ainda, 18% dos respondentes revelaram "insónias clinicamente significativas", agravando drasticamente a percentagem do inquérito de 2017 (11%) para um valor que é quase o dobro da percentagem média registada nos outros países (10% de insones). Notou-se, por outro lado, que, durante a semana, os horários de sono eram mais tardios, que os portugueses se deitaram mais tarde, um "erro massivo", nas palavras da especialista Teresa Paiva, para quem é pecaminoso ir para a cama depois das duas da madrugada. Num outro estudo, este da DECO/Proteste, concluiu-se que a taxa de portugueses com noites mal dormidas duplicou durante a pandemia covid.

Passada que foi a covid, entrou a Rússia na Ucrânia e, com isso, é possível, até provável, que as insónias persistam, crescendo ao mesmo ritmo da inflação e dos preços, da geral e natural ansiedade perante o futuro deste mundo tão confuso. As insónias afectam 28,1% da população portuguesa com mais de 18 anos durante, pelo menos, três noites por semana (nas pessoas com mais de 65 anos, as queixas de insónias chegam aos 50%). Trata-se do distúrbio de sono mais frequente nos nossos adultos, responsável pelo aumento da mortalidade causada por doenças cardiovasculares, problemas psiquiátricos, diabetes, acidentes e absentismo laboral. Daí a dúvida, intrigante: estaremos a dormir pior hoje do que há 200 anos? Será que mesmo os ricos de agora dormem pior do que os pobres de outrora? Questões tanto mais pertinentes quanto sabemos que sem o sono não há sonho, e que este é essencial para a memória e para a fantasia, para o imprescindível alívio das tensões do dia a dia.

Os cegos de nascença, caso não saibam, têm sonhos auditivos (já agora, como será um sonho erótico totalmente auditivo?) e até há registo de como sonhavam os alemães durante o nazismo: em The Third Reich of Dreams. The Nightmares of a Nation, 1933-1939, Charlotte Beradt conta-nos, entre outros casos, que, logo três dias após a subida de Hitler ao poder, um pacato empresário germânico já estava a ter pesadelos com uma visita inspectiva de Goebbels à sua pequena fábrica... E até há um livro, imagine-se, sobre os sonhos dos ingleses com a família real (Dreams About H.M. The Queen and Other Members of the Royal Family, de Brian Masters, 1972), a prova provada de que sonhamos com muitas e várias coisas e de que como isso é importante para nos mantermos vivos e sãos.

Se as estatísticas portuguesas do sono são aterradoras, o mal é geral no mundo ocidental. E quase nos faz pensar que, depois de nos terem tirado o dia, obrigando-nos a trabalhar, tiraram-nos também a noite, impedindo-nos de dormir. Na economia e na sociedade, prevalece um modelo de crescimento, sempre de mais crescimento, que, além de destruir o planeta e o futuro, está-nos destruindo a nós. Na ganância do lucro e do gasto, a implacável struggle for life é responsável por stress e mil ansiedades, angústias em permanência, raiva e ranger de dentes. As buzinadelas no trânsito são só o sinal mais evidente e estridente de uma malaise mais vasta, estendida ao escritório e ao lar, até pela cama adentro. Perante aquilo a que assistimos todos os dias, nas cidades e nas estradas, não estranha tanta insónia, tantas noites mal dormidas; o que estranha, isso sim, é que as insónias não sejam mais, mais frequentes, e que não afectem mais gente. Em De Rerum Natura, Lucrécio elogiou o "austero silêncio da noite" e, séculos depois, em finais de Setecentos, o moralista Joseph Joubert referiu-se à noite como "um grande texto de silêncio". Será isso possível, nos ruidosos tempos que correm?

Fala-se agora, e cada vez mais, na necessidade de "decrescimento", de abrandamento dos ritmos e das vontades, revisitando os trabalhos e as teses de pensadores como Serge Latouche, autor de livros marcantes e até por cá traduzidos, mas como sempre não lidos. Latouche esteve inclusivamente em Portugal, em 2012, para uma conferência só fugazmente notada, e deu uma entrevista ao Público que convém reler. E é sedutora, de facto, a ideia de um "decrescimento sereno", como sedutoras são as propostas de uma "semana de quatro dias", sobre as quais pouco estudei e por isso nada digo. Quer-me parecer, em todo o caso, que nem todos se apercebem, na devida medida, do que significa crescer menos e de forma menos contínua e acelerada. Desde logo, decrescer na produção e no trabalho implicará também, forçosamente, decrescer no lazer e no consumo. Portanto, menos roupas de marca, menos destinos exóticos, menos carros velozes, menos telemóveis da moda. Estaremos nós, especialmente os mais jovens, dispostos a tais sacrifícios? E se uns quiserem decrescer, mas outros não? Como sairão dessa luta as nossas frágeis democracias? Por outro lado, o "decrescimento" terá de ser global, universal. Caso contrário, estarão a China e a Índia a crescer com frenesi e à bruta e nós aqui, na Europa e na América, a minguar alegremente, numa disparidade que já hoje é notória e sensível - e responsável por Trump e por mais populismos.

Tudo sugere, portanto, que, para alcançarmos o merecido sono dos justos, talvez seja mais realista e avisado caminharmos prudentemente, em pequenos passos, ajustando aos poucos a forma de trabalharmos (ex. jornada contínua, teletrabalho, dias alternados, talvez quatro dias à semana) e a forma de descansarmos (ex. menos televisão e computadores, menos "redes" e telemóveis), ao invés de sonharmos com utopias bonitas, mas que jamais serão aplicadas à escala global, como se impõe. Não parece, de facto, que a China, Índia ou Rússia, just to name a few, estejam apostadas no "decrescimento" das suas economias e, menos ainda, importadas com a qualidade de vida dos seus cidadãos.

Onde estiveste de noite, perguntou Clarice num conto. Respondem uns que a dormir, outros a trabalhar, outros em dura vigília, com olhos abertos de insónia. Os povos do Norte acreditam que as auroras boreais são os espíritos dos mortos a brincar no céu: para umas tribos, aquela luzes a brilhar lá no alto são seres humanos a jogar à bola, divertidíssimos, com o crânio de uma morsa; para outras, as do Alasca, são morsas a dar pontapés num crânio humano. Diferença de perspectivas, mas no fundo a mesma história: a noite traz-nos a alegria e a morte, em doses iguais, é só questão de escolher. Saibamos assim gozá-la, nos seus enigmas e mistérios, nas suas doces promessas, antes que ela goze connosco - e nos dê cabo do dia, ou até da vida. E agora, vou dormir (é que vou mesmo!).

Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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