Tempos paradoxais
É um cruel paradoxo da História que o cinquentenário do 25 de Abril tenha coincidido com o crescimento exponencial de um movimento contra a Democracia, que vem negar tudo aquilo em que se baseia a nossa ordem política constitucional. Este cansaço da democracia vem dos que não viveram outro sistema (daí predominarem os mais velhos na oposição a esta corrente) e que se sentem, alguns justamente, outros menos, espoliados e rejeitados pelo sistema.
Um país que oferece aos mais novos perspetivas de vida mais sombrias do que aquelas que tiveram os seus pais é um país doente. Mas o remédio para as dores não são os gritos, são medicamentos que há que ministrar com urgência. Na falta desses medicamentos, é natural que ganhem terreno aqueles que ecoam o nosso grito e transformam a nossa dor em ódio, contra aqueles que poderiam dar-nos os medicamentos, que os conhecem, que os prometem, mas que depois não têm margem ou condições para os conseguir.
As novas tecnologias da informação, que Yves Citton estuda num livro que é, só pelo seu título, uma tomada de posição - A Máquina de Fazer Ganhar a Direita - serão, diz este estudioso, estruturalmente mais favoráveis à direita. Talvez. Mas não temos dúvida de que o comportamento dos nossos órgãos de comunicação social, dominados por uma direita liberal, favoreceu claramente (e já há estudos que o demonstram) a extrema-direita. É que, mesmo quando se ridiculariza ou confronta uma figura, se lhe está a oferecer uma exposição pública claramente superior à dos seus adversários.
E quando todos esses adversários, direita liberal e esquerda democrática (porque a esquerda - não democrática desapareceu, não sei se repararam) se revêem num mesmo sistema, que tem o 25 de Abril como símbolo e a Constituição como base institucional, então aquilo que se lhe opõe, aquilo que é claramente contra o 25 de Abril e a Constituição, alarga a sua base de apoio entre os deserdados e os ressentidos. E depois é difícil explicar-lhes que são o funcionamento da economia e a distribuição desigual da riqueza as verdadeiras causas do seu mal-estar.
Sejamos socialistas ou liberais, por razões completamente opostas, concordaremos com este diagnóstico. Só que a cruel verdade, sejamos socialistas ou liberais, é que não conseguimos melhorar as coisas e vemos as desigualdades e as injustiças crescerem dia a dia. Então o grito prevalece sobre a razão e a dor converte-se em ódio.
A filósofa húngara Agnes Heller, que foi discípula desse grande expoente do pensamento marxista que foi Gyorgi Lukács, defende que passámos de uma sociedade de classes (onde os diferentes partidos representavam diversos interesses de classe) a uma sociedade de massas (onde os partidos catch-all deixam de ter âncoras firmes na sociedade e a manipulação das massas pelos instrumentos mediáticos conduz facilmente a lideranças autoritárias).
Penso que, se é certo que a estrutura de classes das sociedades modernas mudou profundamente desde os tempos de Marx, não deixa de fazer sentido, antes é da maior urgência, uma incansável análise crítica que desmonte os grandes interesses que movem o mundo e se aproveitam das ilusões das massas. Pode ser que caminhemos para uma desumanização do mundo, mas o caminho para essa desumanização é obra de seres humanos e de interesses humanos, bem humanos.
Diplomata e escritor