Straub

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Não foi objeto de gritarias mediáticas, nem de lamúrias oficiais: Jean-Marie Straub morreu no dia 20 de novembro, em Rolle, na Suíça, contava 89 anos. A chamada bíblia informativa do cinema (leia-se: o IMDb), nem sequer se dignou incluir o seu obituário na primeira página do respetivo site, mobilizado que estava a acumular banalidades em forma de acelerados videoclips sobre as novas produções dos estúdios Marvel & afins.

Entretanto, tão dado à celebração fútil de coincidências, o jornalismo mais rotineiro dedicado ao cinema (incluindo o IMDb) não se questionou sobre o facto de Straub ter falecido em Rolle, no Cantão de Vaud, a mesma cidade de onde, a 13 de setembro, chegara a notícia da morte de Jean-Luc Godard. Será que moravam no mesmo bairro? Nem mesmo o pitoresco de uma possível vizinhança acicatou as tristes mentes cinéfilas que teimam em reduzir os filmes a inventários de efeitos especiais.

Em boa verdade, foi melhor assim. Afinal de contas, se os que teimam em descrever o cinema como uma coleção de anedotas mais ou menos pitorescas (a começar pelo IMDb) secundarizaram o desaparecimento de Straub, isso significa apenas que a ira do próprio Straub face à mercantilização do mundo tinha e, infelizmente, continua a ter fundamento - o que, entenda-se, não nos impede de considerar que, ao longo dos anos, algumas manifestações públicas da sua revolta, sem dúvida legítimas e genuínas, nem sempre foram tão ricas e articuladas ou, pelo menos, tão interessantes quanto a austera beleza dos seus filmes.

Digamos, para simplificar, que estamos perante um dos nomes maiores da história do cinema dos últimos 60 anos - a par de Godard, precisamente. Um nome que, importa não esquecer, são dois - já agora, como num filme de Godard. Assim, os espetadores fiéis habituaram-se a usar um plural contundente e carinhoso. Ou seja: "os" Straub. Porquê? Porque a obra de Jean-Marie é, no essencial, o resultado de uma cumplicidade criativa, total e indefetível, com a sua mulher, Danièle Huillet (1936-2006).

De Não-Reconciliados (1965), ainda assinado apenas por Straub (embora Huillet surja já como colaboradora na adaptação do romance de Heinrich Böll em que o filme se baseia), até, por exemplo, Uma Visita ao Louvre (2004), estamos perante uma viagem em que os dois autores nascidos em França se confrontam - e nos confrontam - com as mágoas históricas de um pensamento crítico de raiz europeia, particularmente tocado por heranças alemãs e italianas. Aliás, à maneira do outro cineasta de Rolle - eis uma forma de vizinhança filosófica sobre a qual valeria a pena reflectir.

Adaptando obras de Cesare Pavese, Franz Kafka ou Elio Vittorini - respetivamente, em Da Nuvem à Resistência (1979), América, Relações de Classes (1984) e Sicília (1999) -, Straub/Huillet conduziram o cinema às fronteiras mais remotas da sua expressividade através de uma fidelidade radical às convulsões da escrita. Ou da música: recordemos, sempre sob o signo de Arnold Schoenberg, os exemplos de Introdução à Música de Acompanhamento para uma Cena de Filme (1973), Moisés e Aarão (1975), e Du Jour au Lendemain (1997).

Muitas vezes rotulado de "difícil" pelos espetadores mais preguiçosos, o cinema do casal é, na verdade, eminentemente clássico na obstinada defesa da singularidade de cada imagem, de cada som. Há, aliás, uma via pedagógica para conhecer esse trabalho. Chama-se Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001) e é uma realização de Pedro Costa que propõe uma invulgar e fascinante aproximação documental do trabalho de Straub/ Huillet durante a montagem do já citado Sicília - aí podemos compreender como um filme nasce de um labor imenso com aquilo que se mostra e escuta (edição em DVD: Midas Filmes).

Em Portugal, o Festival da Figueira da Foz foi decisivo para o conhecimento da obra dos Straub. Aconteceu em 1973, com a passagem do emblemático A Pequena Crónica de Anna Magdalena Bach (1968), exercício que cruza a música de Bach, interpretado por Gustav Leonhardt, com as memórias de sua mulher. Sem qualquer cedência nostálgica, creio que faz sentido dizer que a depurada modernidade desse filme o preserva como um objeto liberto de qualquer determinismo temporal. E se o leitor não disser a ninguém, acrescento que dele existe no YouTube uma cópia de muito boa qualidade.

Jornalista

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