Somos todos pela democracia…
O Presidente Biden organiza nos dias 9 e 10 uma cimeira virtual pela democracia. Será a primeira de duas. Nesta, o objetivo é o de levar cada dirigente a anunciar medidas que reforcem a vivência democrática no seu respetivo país. Na segunda, dentro de um ano, proceder-se-á ao balanço das promessas agora feitas. Os EUA também assumirão compromissos. Veremos quais, porque, nos últimos anos, a democracia americana revelou fragilidades preocupantes. Os EUA fazem parte, aliás, do grupo de países em recuo democrático, segundo o relatório deste ano do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA), uma organização idónea baseada em Estocolmo.
À partida, considerei a iniciativa um erro, uma nova tentativa de criar divisões no seio da comunidade das nações e mais uma facada no sistema multilateral. Porém, tendo em conta que o clima democrático internacional tem conhecido sérios retrocessos nos tempos recentes, acabei por dar o benefício da dúvida a Biden. E fico, como muitos outros, à espera dos resultados. Tudo o que possa contribuir para o reforço dos direitos fundamentais e para uma melhor governação será bem-vindo. Como também será importante que se discuta o impacto da revolução digital nas escolhas políticas e na libertação das vozes dos cidadãos.
Uma reunião deste género é, no entanto, uma grande encrenca. A lista dos excluídos vai dar tanto que falar como os temas em debate. A ONU tem 193 Estados-membros. Biden convidou cerca de 110. Na UE, Viktor Orbán ficou de fora, dando assim um argumento de peso a quem vê no líder húngaro o que ele de facto é: um autocrata. Mas a Polónia, que não é certamente um melhor exemplo de um Estado de direito, consta da lista. A razão parece clara: Varsóvia é um aliado militar fiel, e cada vez mais forte, da política americana no Leste da Europa. Ainda no que respeita à NATO, Recep Tayyip Erdogan também não aparece na lista. Muito provavelmente porque os americanos não apreciam a sua proximidade político-militar com Vladimir Putin. Erdogan tornou-se uma pedra na bota da NATO e isso deixa muita gente desconfortável. E no caso da CPLP, compreende-se a exclusão das duas Guinés - Bissau e Equatorial. Mas fica a interrogação sobre as razões que levaram a Casa Branca a não convidar Moçambique.
Nem a China nem a Rússia farão parte do encontro. Os respetivos embaixadores em Washington co-assinaram um artigo em que condenam a cimeira. Depois, surgiram outras críticas, em Beijing e Moscovo. A China, que está furiosa por Taiwan ter sido convidada, garante que é uma democracia socialista, amplamente apoiada pela população - hoje já ninguém fala em ditadura do proletariado. A Rússia vai mais longe e reivindica a existência de um sistema parlamentar com mais de 100 anos, o que inclui toda a época de Estaline e companhia. No essencial, ambos os regimes juram a pés juntos que são democráticos, cada um à sua maneira. E que, por isso, a cimeira é arrogante, divisiva e, na sua essência, uma provocação contra a China e a Rússia.
A democracia é um conceito muito elástico. Nenhum ditador jamais reconhecerá que o seu regime é antidemocrático. Antes pelo contrário, todos defendem que foram democraticamente eleitos. Assim o proclamam Vladimir Putin, Alexander Lukashenko, Nicolás Maduro, Bashar al-Assad e muitos outros. Também Robert Mugabe, no seu tempo, dizia que as eleições, que roubava à tripa-forra, eram perfeitamente legítimas e livres. Assim como outros, que fui conhecendo ao longo da vida profissional e depois de ter assistido a várias trapalhadas eleitorais. O único que não terá preocupações desse tipo será Kim Jong-un, o déspota cómico-trágico da Coreia do Norte.
Os temas em discussão - como travar o autoritarismo; o combate à corrupção; e a defesa dos direitos humanos - são pilares fundamentais da democracia, não haja dúvidas. Onde haverá certamente espaço para dúvidas será quando se conhecerem os compromissos que certos países irão proclamar, a pensar que tudo isto é só conversa. Mesmo assim poderá valer a pena ir avante com a cimeira, que o progresso também se faz com iniciativas idealistas.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU