Sobre diplomacia cultural
À conceção tradicional da diplomacia como arte e técnica do diálogo e da negociação entre Estados, ao nível dos seus poderes políticos soberanos, veio acrescentar-se nos nossos dias um conceito mais alargado de diplomacia. Entende-se hoje que as relações entre os povos e as nações, através das suas entidades económicas, das suas instituições culturais e educativas e das organizações da sociedade civil, são também sujeito e objeto da diplomacia e como tal devem ser reconhecidas e incentivadas pela tradicional e insubstituível diplomacia estatal.
Foi assim que os departamentos de relações económicas (antigamente confinados à esfera consular) e de ação cultural externa vieram autonomizar-se dentro da ação diplomática dos Estados. Cabe, agora, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, em articulação com as áreas governamentais da Economia e da Cultura, um papel de crescente importância na promoção e no desenvolvimento destas relações: no estímulo e apoio aos empresários e criadores privados no processo da sua internacionalização, como no desenvolvimento das relações, a todos os níveis da sociedade civil, entre os povos e as nações.
Entre nós, a ação cultural externa é liderada pelo Instituto Camões do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Do mesmo modo que em França o Quai d"Orsay manteve a iniciativa e a coordenação política da difusão da cultura francesa no mundo (apesar da oposição de André Malraux, que queria integrar plenamente essa atividade no Ministério da Cultura), assim aqui em Portugal, contra muitos que entendiam deverem ficar as relações culturais externas exclusivamente no âmbito do Ministério da Cultura, não só se manteve o Instituto Camões na esfera do MNE, como recentemente, em 2017, foi decidido institucionalizar a ação cultural externa do Estado Português numa estrutura definida de articulação partilhada entre os dois ministérios, Negócios Estrangeiros e Cultura. É apenas de lamentar que se tenha mantido a fusão infeliz do Camões com a Cooperação Portuguesa, diluindo a ação cultural externa na área da cooperação para o desenvolvimento, péssima decisão dos governos da "troika", que nunca foi revertida.
Dada a escassez dos recursos, com o reduzido número de conselheiros e adidos culturais de que dispomos, muitas vezes são os leitores de Português nas universidades, cuja missão fundamental é o ensino da língua, a colaborarem com as embaixadas no desenvolvimento da ação cultural possível.
A promoção e difusão da língua portuguesa são importantes, mas a partilha da língua não é o único modo de partilha cultural: eu vi na Ásia um culto da cultura e da memória portuguesas por gentes que se reivindicavam do nosso nome sem falar a nossa língua; e vi no Brasil como, no âmbito mesma língua, se construiu uma cultura própria e distinta, tão orgulhosa da sua diferença que até tenta por vezes esquecer que Portugal existiu na sua História. Eu vi descendentes de emigrantes portugueses que mal dominavam a nossa língua, mas que sentiam uma enorme e afetuosa curiosidade pela nossa cultura, que é a cultura dos seus avós, de que se orgulham. É importante a língua, sem dúvida: mas não pode ser o único e exclusivo eixo para a ação cultural externa.
Qual é afinal o sentido e a importância da cultura na nossa presença e afirmação no mundo?
O profundo cosmopolitismo, que levou Fernando Pessoa a dizer que "um verdadeiro português nunca é só português", leva-nos, se o quisermos compreender até ao fim, a entender que todas as culturas hoje são e só poderão ser culturas-mundo, pois que é na diversidade e na abertura que as culturas respiram e o identitarismo estreito é não mais do que uma forma de asfixia cultural.
Temos uma língua e uma cultura que historicamente se projetaram no mundo por todos os continentes e que deixaram uma marca, que nos cabe atualizar e revitalizar, sem eurocentrismos anacrónicos nem imaginários imperiais.
Temos uma criação cultural que alcançou hoje um reconhecimento nos grandes centros internacionais, que nós próprios, há quarenta ou cinquenta anos, não imaginaríamos. A presença da nossa cultura no estrangeiro é hoje natural e quotidiana e não mais uma surpresa imprevista. Seja na literatura, no teatro, na música ou nas artes plásticas, as criações portuguesas estão cada vez mais presentes, com naturalidade, no mundo.
A diplomacia cultural, como toda a diplomacia, deve ser instrumental e apoiante desta afirmação internacional da nossa cultura. Que lhe dêem para tal os necessários recursos e instrumentos é o que nos permitimos desejar!
Diplomata e escritor