Soares pode ser fixe. Mas não é este

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Não vi, e não gostei. A estreia há uns dias do filme Soares é Fixe, um biopic de Mário Soares cujo foco dramático - dizem, que eu não vi - é a 2.ª volta das eleições presidenciais de 1986, foi, evidentemente, o pretexto para os seus sucessores à frente do Partido Socialista se porem em bicos de pés na vernissage e terem a lata, como disse Pedro Nuno Santos, de reclamar que o biografado é a sua “referência política”.

Coincidência ou não, há eleições daqui a poucas semanas, e tão dramáticas para o futuro da democracia em Portugal - ou certamente mais porque não há comparação entre o melífluo e legalista Freitas do Amaral e o estridente “partir a louça toda” que anda por aí - como as de 1986, onde o que estava em jogo era apenas o cargo de Presidente da República. Um cargo já destituído, pela revisão constitucional de 1982, de muitos dos seus poderes, sobretudo o poder discricionário de demitir e nomear governos, criando um Tribunal Constitucional e um Conselho de Estado para substituir o já obsoleto Conselho da Revolução e mandar os militares para os quartéis, pondo fim definitivo ao poder de génese revolucionária do Movimento das Forças Armadas e à tutela que exercia não democraticamente sobre a vida democrática.

Essa revisão constitucional, em que se uniram o PS de Mário Soares e o PSD de Pinto Balsemão, este seguindo a intenção do seu antecessor Sá Carneiro e, por arrasto, a direita católica, reaccionária e conservadora do CDS, visava instituir um regime democrático e parlamentar aceitável pelas democracias europeias, abrindo o caminho para a integração na Comunidade Económica Europeia, e, num plano de vendetta pessoal, o triunfo de Soares e Balsemão sobre o então Presidente Ramalho Eanes, por quem ambos nutriam uma justificada aversão política, para não dizer pessoal. O que se reflectiria, aliás, na campanha eleitoral de Soares em 1986, com a criação de um tempo de antena onde Eanes era retratado e ridicularizado como o “general-balança”. Duvido que apareça no filme. Essa revisão constitucional que marcou o fim definitivo do PREC (Processo Revolucionário em Curso, é preciso esclarecer para os mais novos), recorde-se, teve os votos contra do PCP, com o formidável argumento de que era um “acintoso” e “prestimoso” serviço do PS à Aliança Democrática (então no governo) para “restaurar os monopólios e liquidar o regime democrático”.

É necessário recordar este contexto para perceber que o que estava em jogo nas eleições presidenciais de 1986 não era nem uma ameaça ao regime democrático nem a “restauração dos monopólios” e a privatização do gigantesco sector empresarial do Estado, onde se incluíam bancos e companhias de seguros, jornais e televisão, companhias de electricidade e telecomunicações, e tudo o mais que tinha sido nacionalizado, incluindo uma imensidão de pequenas e médias empresas que, por estarem endividadas aos bancos, acabaram nas mãos de gestores nomeados pelos governos, dando origem a uma estonteante e absurda “dança das cadeiras” sempre que mudava ou um governo ou um ministro e centenas de gestores transitavam com a mesma incompetência entre empresas ao sabor das conveniências ou, muito frequentemente, apenas das amizades. Tudo isso começou a ser privatizado, sim, e debaixo da presidência de Mário Soares, pela determinação do governo de Cavaco Silva, que em 1988 - dois anos após a inauguração da primeira presidência de Soares - abriu a porta à “restauração dos monopólios” com a privatização, imagine-se, de um fabricante de cervejas, a Unicer. Beber Super Bock passou a ser uma acintosa cavadela nas amplas liberdades democráticas.

A eleição de Soares à Presidência em 1986 poderá ter sido, e foi certamente, o apogeu da sua carreira política, mas não é por isso que será lembrado pela História (com H grande), por muitas histórias que se contem. Soares teve um papel fundamental na criação de uma oposição organizada não-comunista ao regime de Marcello Caetano com a fundação do PS e, antes, em 1969, da CEUD, no que teve a acintosa acusação dos comunistas de ser uma organização de “cúpulas” de um “neocolonialista encapotado”. E teve, após o 25 de Abril, um papel central e determinante na luta contra a instauração em Portugal de um regime militar ditatorial de extrema-esquerda nos anos de 1974 e 75, quando o país vivia na anarquia e à beira da guerra civil. É claro que Soares não foi o único a travar esse combate pela democracia ocidental e “burguesa”, onde sectores militares não revolucionários, desde o “Grupo dos Nove”, que davam o nome e a cara pela realização de eleições livres, até ao então Presidente Costa Gomes, Ramalho Eanes e outros, como Salgueiro Maia, tudo fizeram para fazer regressar a tropa aos quartéis e assegurar a viabilidade da democracia representativa.

Soares foi também o político que aceitou, porque era um democrata, a necessidade de compromissos ao centro, numa época em que não havia maiorias parlamentares. Foi Soares quem criou o “bloco central” em 1983, numa aliança governativa com o PSD, e, já Presidente, tudo fez para evitar que o PS votasse favoravelmente uma moção de censura ao governo minoritário do PSD de Cavaco Silva. Com a percepção e argúcia política de perceber que com a realização de novas eleições quem ganharia seria a direita.

De todas estas histórias da “História”, onde é que Pedro Nuno Santos vai buscar as suas “referências políticas”? Ao Soares que não só sempre recusou a “aliança de esquerda” que lhe oferecia, acintosamente dir-se-ia, Álvaro Cunhal e o PCP? Ao Soares que encabeçou a luta contra a deriva revolucionária antidemocrática? Ao Soares que apadrinhou uma revisão constitucional imprescindível à adesão à CEE e que abriu portas às privatizações e “restauração dos monopólios”? Ou ao slogan, criado num golpe de génio propagandístico por António-Pedro Vasconcelos para atrair as criancinhas, do “Soares é fixe”? Num momento político muito mais perigoso para a democracia do que as eleições de 1986, vai o PS de Pedro Nuno Santos abrir as portas à direita não democrática, inviabilizando governos minoritários do PSD? Parafraseando uma frase genial do militante comunista Mário Castrim, tão comunista que tinha o sobrenome de “o Sectário-Geral” pela verrina - acintosa, claro - que derramava sobre Soares e o PS, “ó Pedro! Ó Nuno! Ó santinho!”. Leia mais História e vá menos em histórias da carochinha.

Director do Diário de Notícias 

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