SNS XIV – O Plano
À atenção do Senhor Primeiro Ministro e de todos quantos peroram sobre o coitado do Serviço Nacional de Saúde:
Peço desculpa, mas isto já não vai com paninhos quentes.
Enquanto não forem ao fundo da questão, vamos sempre ter problemas crónicos agudizados em épocas ou de férias generalizadas ou de maior afluência aos hospitais por via das doenças sazonais. Falo aqui de problemas crónicos agudizados partindo do princípio de que estão um pouco familiarizados com a semiologia, peça fundamental para se poder fazer um diagnóstico correcto e instituir uma terapêutica acertada.
Mas pelo que tenho visto nos últimos tempos, creio que estarei a chover no molhado, mas adiante, que o problema é grave.
E mais grave é quando vemos os que estavam no poder há alguns meses usarem os mesmos argumentos para denegrir o SNS que os que estavam na oposição há precisamente os mesmos meses atrás mencionados usavam para atacar os que estavam no poder antes de serem oposição!
A única diferença é o aparecimento de um Plano!
Agora há um Plano de Emergência que planeia como se irão resolver os problemas de um Serviço inexistente.
Antes do Plano, em outro governo, foi criada uma estrutura executiva para o SNS virtual, que demorou mais de um ano para ver a luz do dia.
Vamos por partes:
O SNS é uma coisa que não existe na realidade como Serviço estruturado (uma pequena comparação – o Serviço de Finanças rege-se pelas mesmas regras em qualquer repartição, esteja sediada em Trás-os-montes, no Alentejo ou no Algarve, isto é, tem um fio condutor e uma filosofia bem delineada), o SNS foi criado porque era indispensável dar uma resposta política à forma como os cuidados de saúde eram prestados antes do 25 de Abril de 1974, seguindo exemplos do que se fazia nos países do norte da Europa.
Mas não houve na sua génese uma definição filosófica geral orientadora do que deveria ser um Serviço de Saúde de âmbito nacional.
Agregaram-se vontades políticas, juntaram-se hospitais e médicos e nasceu um Serviço que se foi adaptando à necessidade do tempo.
Nasceu dos hospitais e dos médicos hospitalares, e cresceu para os hospitais e médicos hospitalares.
O utente veio depois - não gosto do termo utente, mas era o que havia na altura.
O SNS não existe.
Não há um Serviço Nacional de Saúde!
Há um conjunto de Hospitais, centrais, distritais e locais, formando uma rede hospitalocrática centralizadora e uma enorme rede de Centros de Saúde secundarizados ao “poder” dos primeiros, sendo que primeiros deveriam ser os segundos porque afinal são estes quem primeiro deveria atender os pacientes. Não há um SNS estruturado como tal e não é possível encarar o SNS ainda e sempre tal como o foi na sua génese. Mudaram os tempos, evoluíram as pessoas, e as tecnologias tornaram possível uma muito maior interacção entre pares.
Não é mais possível resolver os problemas superficialmente sem ir ao fundo.
E ir ao fundo significa refundar todo um Serviço Nacional que começou, e bem, dentro do que era possível na época da sua criação por ser uma manta de retalhos sem um espírito comum, conferindo-lhe precisamente essa linha comum a todos quantos querem ter orgulho de pertencer a uma equipa ganhadora.
Enquanto o Serviço Nacional de Saúde, tal como o conhecemos fôr uma hospitalocracia e um terreno fértil de reivindicações políticas corporativas, não haverá um verdadeiro espírito de Serviço Público, logo não haverá um verdadeiro Serviço Nacional de Saúde.
Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, e sem mudanças estruturais de paradigmas, dificilmente teremos um Serviço Nacional. Continuaremos a ter uma manta de retalhos de muitos serviços locais, enredados em várias e complexas teias de interesses reivindicativos, campo fértil para a política barata e populista que se tem visto ao longo dos anos da existência do SNS.
Há que ter coragem na mudança necessária para que seja da base que se parte para o topo, tal como preconizava Maslow. Sem a garantia de que as necessidades básicas estão asseguradas, nenhum recém-nascido terá a garantia de que a sua Saúde será a qualidade que todos almejamos nem a excelência que o País tem a obrigação de providenciar.
Já escrevi acima que o SNS foi uma manta de retalhos na sua génese (também já referi ter sido necessário ser assim!), sem um fio condutor ou filosofia comum.
Foi, é, e continua a ser cada um por si, cada centro de saúde e cada hospital a reger-se de acordo com as suas próprias orientações internas, resolvidas por administradores mais preocupados com o tacho do que com a eficiência de um Serviço Global.
Os governo entretantos, entretêm-se com medidas de cosmética financeira e novos Planos de Emergência, criando Comissões para se poderem gizar outros novos planos sempre que há uma agudização da patologia crónica, prometendo aumentos de salários base a quem trabalhar em regime de dedicação plena e outras “regalias” similares para ver se estanca a saída de jovens médicos recém especialistas para o sector privado que se mostra mais atraente em termos remuneratórios, com ambos, governo e médicos, a esquecerem que estes só são especialistas porque fizeram obrigatoriamente os seus internatos de especialidade em hospitais públicos, e assim será pelo menos enquanto forem estes os hospitais reconhecidos para esse fim.
Vem agora o senhor Primeiro Ministro lançar uma ideia (que não é nova nem original) de que são necessárias mais Escolas de Medicina para jorrarem fornadas de jovens Médicos no Sistema como panaceia para os défices crónicos, agudizados em épocas de férias ou em épocas de exacerbação de procura devido às patologias sazonais. Mais uma vez se nota a falta de um olhar semiológico para se poder chegar a um diagnóstico correcto. Se olharmos para uma razão de uma Faculdade de Medicina por cada milhão de habitantes, concluímos que o País já não está tão mal como isso. A base de uma boa Escola de Medicina está na qualidade de investigação que produz e, a ajuizar pelos investimentos nesta área, vemos que esta é uma ideia votada ao fracasso. Teremos escolas de 1ª e escolas de 2ª , uma péssima solução para o desenvolvimento dos jovens estudantes.
O SNS precisa, como já referi, de uma refundação filosófica e estrutural profunda, de uma visão semiológica abrangente em relação ao País (Regiões Autónomas incluídas), sem a qual estaremos ciclicamente (com ciclos muito curtos, como se tem visto e sentido) a discutir o sexo dos anjos e a dizer mal uns dos outros sem procurar uma solução que assegure um SNS eficiente em todo o território nacional.
Haja coragem de agir é há tanto por fazer.
Menos planos (independentemente do mérito que um plano de emergência possa ter, e tem-no certamente, mas não passa de uma medida de cosmética política destinada a um demonstrar que se está a fazer alguma coisa a mais do que os que lá estiveram e não fizeram) e mais acção é o que se pede a quem quer deixar a sua pegada na História do País.
O País agradece!
Médico