"Os deuses amam os que morrem jovens porque o absoluto é a sua medida." (Fernando Pessoa).A Revolução devora os seus filhos. (Buchner).Em março de 1977 eu tinha vinte e seis anos. Ao contrário de Nizan e da sua famosa proclamação "eu tinha vinte anos e não deixarei ninguém dizer que é a mais bela idade da vida", durante os meus vinte anos eu vivi a Revolução e foi sem dúvida a época mais intensa e apaixonadamente vivida para todos nós que a partilhámos..Em março de 1977 desembarquei em Luanda para desempenhar o meu primeiro posto diplomático no estrangeiro. Era muito peculiar a ação diplomática portuguesa em Luanda, nesse tempo: o não reconhecimento por Portugal, aquando da independência, do governo do MPLA criara um fosso entre as nossas autoridades e os nossos Estados, difícil de ultrapassar..Em março de 1977 cheguei a uma Luanda dominada por uma guerra ideológica dentro do MPLA, que acrescia à guerra civil com a UNITA e a FNLA, guerra ideológica de que a linguagem me era familiar dos tempos do PREC..O filme Sita, de Margarida Cardoso, constitui um importante testemunho daqueles tempos de sangue e de fúria em Angola. Mas passa-se com o 27 de maio de 1977 um fenómeno inverso à habitual dominação do discurso da História pelos vencedores: os vencidos, alvo de uma cruel e desmedida repressão que abriu feridas ainda hoje em aberto na sociedade angolana, procuram apossar-se da narrativa histórica, aproveitando o embaraço, a dor e até a vergonha que causa aos protagonistas falar hoje daquela época..Eu estava em Luanda no dia 27 de maio de 1977 e posso testemunhar que o que se passou esteve longe de constituir uma "manifestação pacífica para pressionar Agostinho Neto", como ouvi num dos testemunhos recolhidos no filme..Encontrei então alguns dos jovens comunistas portugueses que, contra a orientação do seu partido, quiseram ir fazer a revolução em Angola. Havia ingenuidade e boa vontade neles, por certo, mas a crueldade pode parecer legítima quando se tem em mente que "a violência é a parteira da História" (Marx) e que "a Revolução será necessariamente penosa, sangrenta e dolorosa" (Lenine)..Apenas deixo aqui um testemunho pessoal (que consta, aliás de um telegrama que está no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros e foi já desclassificado)..Eu tinha contactos, na embaixada da Jugoslávia, com o responsável dos serviços secretos daquele país. A Jugoslávia era país líder do movimento dos não alinhados e apoiava o MPLA..O que este diplomata jugoslavo me transmitiu foi que existiria uma intenção de Agostinho Neto de se aproximar dos não alinhados e reduzir a sua dependência dos soviéticos, intenção obviamente apoiada por Belgrado..Segundo esta explicação, os nitistas, fiéis seguidores e admiradores da URSS, teriam sido manipulados e utilizados pela embaixada soviética (que não os teria dissuadido nem contrariado nas suas intenções) a fim de assustar Agostinho Neto e mostrar-lhe o que aconteceria se ele persistisse nessa via. Os cubanos salvaram Neto e os soviéticos ganharam então o inteiro controle da situação, deixando massacrar os seus amigos nitistas, apenas com a preocupação de salvar os agentes secretos do KGB, tal como a própria secretária do Presidente, que foi levada para Moçambique..Pouco tempo depois, o meu colega jugoslavo foi expulso de Angola e o presidente Agostinho Neto anunciou em Congresso a transformação do MPLA em Partido do Trabalho, "sob o olhar silencioso de Lenine", cujo busto dominava aquela sala. Até um ano depois, continuaram sem piedade as perseguições e os massacres, tendo apenas sido alcançado que os portugueses alegadamente implicados no golpe pudessem ser expulsos de Angola e salvar assim as suas vidas e as suas liberdades. Mas nem todos tiveram essa possibilidade....Depois de ver o filme, pensei que cada vez tenho menos certezas sobre o que verdadeiramente esteve em jogo naqueles dias. Os mais importantes arquivos soviéticos (os do KGB) nunca foram abertos. Haverá em Belgrado, nos arquivos, traços e provas daquela teoria que o colega jugoslavo me transmitiu? Num jogo político em que a ilusão do adversário é uma arma fundamental, que crédito podemos dar a cada um dos protagonistas? Alguma vez saberemos?.Sita Valles, morta aos vinte e cinco anos sob o signo de Saturno, às mãos da Revolução que tanto amava, interpela tragicamente as nossas memórias e os nossos antigos ideais.. Diplomata e escritor