Síria, uma guerra sem conclusão à vista 

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Por breves momentos a Primavera Árabe suscitou a esperança que as forças jihadistas e autocráticas que se confrontavam no Médio Oriente se tivessem tornado obsoletas. Ao entusiasmo sucedeu-se a desilusão.  

A revolução Síria, que se aparentava ser uma réplica da Praça Tahir, em vez de unir as forças que a sustentavam fez deflagrar tensões velhas de séculos entre xiitas e sunitas. Em consequência da complexidade demográfica do país, o ódio, a selvajaria e a barbárie grassam há mais de uma década naquela que é a guerra mortífera deste século. Desfez-se o estado multitribal, multirreligioso, a guerra civil é uma espécie de segunda parte de Hama, o massacre em poucos dias de cerca de 30 mil sunitas da Irmandade Muçulmana pelo alauita Hafez al-Assad, pai do atual presidente. 

A tragédia síria é tão prolongada, tão difícil de entender, que se tornou “normal”. O Ocidente esqueceu rapidamente as “sextas-feiras de raiva”, Hamza al-Khateeb, o adolescente de 13 anos torturado até à morte, esqueceu o massacre do Ramadão e as armas químicas em Douma nos arredores de Damasco. Os civis sírios pagaram um preço altíssimo: centenas de milhares de mortos, mais de treze milhões de refugiados e deslocados internos.  

Quando a tragédia parecia desfocada Alepo, a segunda maior cidade da Síria, regressou às televisões. Parte da cidade está sob o controlo de milícias rebeldes lideradas pela Hayat Tahrir al-Sham, “Assembleia para a Libertação da Síria”, anteriormente conhecida como Jabhat al-Nusra, um grupo da oposição síria sunita e uma organização terrorista que tem por objetivo derrubar o regime de Bashar al-Assad e estabelecer um emirado islâmico na Síria. Os sírios parecem condenados a escolher entre o menos mau dos péssimos.  

Ser uma arena de competição de interesses estratégicos estrangeiros ainda dificulta mais as coisas. Cinco Estados - Irão, Israel, Rússia, Turquia e EUA -, bem como uma multiplicidade de milícias nacionais e estrangeiras, têm presença militar no terreno.  

De acordo com IISS, Instituto Internacional para os Estudos Estratégicos, uma perspetiva de segurança regional, “o conflito é inequivocamente uma guerra por procuração e um teatro fundamental para as ambições de política externa dos atores estatais internacionais e regionais, que perseguem objetivos que vão para além da Síria”.  

Olhemos para um deles, a Rússia. Conquanto Damasco tenha sido um aliado de Moscovo no decorrer da Guerra Fria, a Síria deixou de ser considerada como tal na década de 1990 e no início da década de 2000, uma vez que os responsáveis políticos do Kremlin acreditavam que Assad estava mais interessado numa aproximação ao Ocidente.  

A invasão do Iraque em 2003 e a crescente pressão ocidental sobre a Síria, acusada de desenvolver armas de destruição maciça, albergar terroristas e suprimir a soberania do Líbano, levaram Damasco a regressar aos braços dos seus parceiros habituais - o Irão e a Rússia. A Rússia retomou de bom grado as relações com a Síria, mas as relações bilaterais foram condicionadas por outras considerações regionais, por exemplo, o interesse de Moscovo em manter uma cooperação estreita com Israel.  

Em 2014, a situação na Síria deteriorou-se drasticamente devido aos avanços do Daesch e o presidente russo temeu que a Síria se tornasse um centro gravitacional terrorista, o que constituiu um vector relevante, embora não o único, para intervir militarmente. Recordemos que à época, Putin, enfrentava a pressão ocidental devido à anexação da Crimeia, e viu na Síria uma oportunidade para melhorar a sua posição internacional e demonstrar à opinião pública internacional que a Rússia podia desempenhar um papel construtivo e combater uma das mais graves ameaças globais: o terrorismo.  

Face à deterioração das relações russo-americanas, a Síria tornou-se um dos palcos de competição entre Washington e Moscovo. Neste contexto, as forças expedicionárias russas na Síria tornaram-se parte do perímetro defensivo externo que limita a atividade naval dos EUA no Mediterrâneo Oriental. Consequentemente, apesar da sua retirada parcial simbólica em 2017, a Rússia estabeleceu bases aéreas e navais permanentes em Latakia e Tartus. 

É pouco provável, salienta o EU Today, “que o atual momento da escalada na Síria seja uma coincidência.  Alguns analistas apontam para a insatisfação do Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, com a recente rejeição de Moscovo da sua proposta de cessar-fogo na Ucrânia. O governo de Erdoğan apoiou grupos rebeldes sírios no passado e mantém uma presença militar no norte da Síria, controlando os principais redutos rebeldes em Idlib. Esta dinâmica geopolítica sublinha o papel potencial da Turquia na facilitação da ofensiva rebelde. Ao permitir ou encorajar a operação, Ancara pode estar a pressionar Moscovo a reconsiderar a sua posição em relação à Ucrânia, sobretudo numa altura em que a comunidade internacional, incluindo os Estados Unidos sob a presidência eleita de Donald Trump, procura pôr fim ao conflito na Europa Oriental”. 

A escalada na Síria representa um teste crítico à capacidade  russa de manter múltiplos objetivos de política externa em simultâneo. Perder a Síria como ponto de apoio estratégico no Médio Oriente prejudicaria a influência da Rússia na região, incluindo o seu acesso ao Mediterrâneo.  

As relações entre a Rússia e a Turquia no que respeita à Síria têm alternado entre competição e cooperação, embora sempre caracterizadas por um elevado grau de desconfiança.  Mas não são os únicos desconfiados neste processo. O Irão e a Turquia, parceiros no moribundo processo de Astana, estão envolvidos numa rivalidade no norte do país. A Rússia ignora os ataques israelitas contra alvos iranianos no interior da Síria, apesar de Moscovo e Teerão terem sido parceiros próximos na garantia da sobrevivência de Assad. 

“Para além da obstinação do regime de Assad, o principal fator que frustra qualquer tentativa de resolução significativa do conflito é o facto de todas as potências estrangeiras envolvidas perseguirem objectivos estratégicos, em termos de segurança regional e influência geopolítica, que vão para além da Síria”, aponta o IISS.  

O Irão utiliza a Síria para desafiar Israel, investindo em infra-estruturas militares e patrocinando milícias. Na Síria, Israel prossegue o seu objetivo de conter a expansão do Irão através dos serviços secretos e da capacidade aérea. 

O principal objetivo da Turquia é frustrar quaisquer ambições de independência dos curdos sírios, mantendo a sua própria rebelião curda sob controlo. É por isso que estabeleceu zonas-tampão militares em território sírio. O objetivo de Ancara tornou-se, no entanto, menos ambicioso ao longo da década de conflito: os seus esforços anteriores para provocar uma mudança de regime em Damasco foram frustrados por interesses geopolíticos opostos e revelaram-se irrealistas, dado o apoio de Teerão e Moscovo a Assad. Isto parece ter mudado com a Guerra na Ucrânia e a debilitação por Israel dos proxys do Irão, como o Hezbollah. 

Por onde irá a história? Um novo capítulo poder-se-á ter aberto. 

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