Síria: à espera dos próximos capítulos

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A paz é, e sempre foi, a aspiração humana suprema”, repetia frequentemente Javier Pérez de Cuéllar, o segundo Secretário-geral da ONU com quem trabalhei. Era uma maneira de nos lembrar que as Nações Unidas devem considerar a diplomacia, o diálogo político e a cooperação como as suas prioridades absolutas. Todavia, Pérez de Cuéllar era também um realista, termo que tantas vezes é um eufemismo de pessimista. Por isso, acrescentava ao comentário sobre a importância da paz uma observação que nos fazia refletir sobre a nossa responsabilidade enquanto quadros internacionais: “E, no entanto, a nossa história mostra à evidência que, embora falemos incessantemente de paz, as nossas ações contam uma história muito diferente.”

Que diria ele agora que Bashar al-Assad foi corrido do poder, depois de quatorze anos de guerra civil, de crimes contra a humanidade, de assassinatos às suas ordens de centenas de milhares de cidadãos, de milhões de refugiados que tiveram de abandonar o país, de inúmeros casos de tortura, terror e miséria? Depois de passar anos a pilhar e destruir o país, a produzir drogas sintéticas para os mercados internos e vizinhos, uma atividade que se transformou numa das fontes de enriquecimento da família Assad e do regime? Será que nós, que aprendemos com Cuéllar e outros líderes pacifistas, podemos hoje adotar uma visão otimista sobre o futuro da Síria e da região?

Os primeiros sinais do novo poder em Damasco têm sido de paz e de aparente reconciliação nacional, apesar da destruição que ficou para trás, das imensas carências humanitárias – as Nações Unidas estimam que 16,7 milhões de cidadãos sírios precisam de assistência humanitária, foi dito no Conselho de Segurança de 9 de dezembro –, dos inúmeros ataques da aviação israelita contra numerosas bases aéreas e portuárias em território sírio. E sem esquecer que se trata de uma nação etnicamente fraturada, rodeada por uma vizinhança em que primam a hostilidade e as ambições de domínio geopolítico.

Num quadro destes, as respostas não são encorajadoras. Poderão vir a sê-lo, no entanto, se houver respeito pela diversidade e se se conseguir impedir as interferências externas. 

Do ponto de vista doméstico, é fundamental sublinhar as raízes comuns às diferentes etnias nacionais e reconhecer que a Síria é um elemento central no mundo árabe, sobretudo no que respeita à história e à cultura. O país é um ponto de convergência de múltiplas culturas do passado e tem, em simultâneo, as condições suficientes para se tornar um viveiro de várias expressões da cooperação futura. A Síria é uma encruzilhada no mundo árabe. Trata-se de aceitar o mosaico nacional, enriquecido por uma língua ímpar e culta, e afastar todo e qualquer desvio fundamentalista e de inspiração terrorista.  

Quanto ao exterior, sublinharia dois aspetos fundamentais. Primeiro, evitar as intervenções externas, russas, iranianas, turcas, israelitas, ocidentais; são intervenções negativas, contrárias à estabilidade do Médio Oriente. Apenas têm ou teriam como consequência última destruir a unidade nacional e pôr em pé de guerra o Médio Oriente, servindo tão somente os interesses estratégicos próprios dos Estados intervencionistas. O segundo aspeto deverá passar pela mobilização do apoio da Liga dos Estados Árabes. Esse apoio é essencial para a reconciliação nacional, a reconstrução e a defesa da Síria. Deve ser levado a cabo em coordenação com as instituições da ONU e assentar numa resolução do Conselho de Segurança que atribua a autoridade necessária para o bom funcionamento da missão do Enviado Especial para a Síria do Secretário-geral das Nações Unidas. 

Na mesma linha de ação, a nova Síria deve exigir o fim da iniciativa chamada de Processo de Astana, iniciada em 2017 pela Rússia, a Turquia e o Irão. A reunião mais recente desse grupo teve lugar em Doha, a 7 de dezembro, horas antes da queda de Assad. O grupo não tem uma solução de paz para a Síria. Cada um puxa o rabo à sua sardinha, chame-se ela Assad, curdos pró-Erdogan ou os interesses do Irão, que gostaria de ser visto como uma potência regional. 

Não posso deixar de dizer, antes de fechar esta nota, que a decisão de certos países europeus sobre a precipitada anulação do asilo político aos refugiados sírios, quando o futuro do país permanece problemático, é um erro. Pode ser mais um favor feito à extrema-direita europeia. Só mostra que a Europa da timidez e do comodismo soma e segue. 

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