Sir David Amess (1952-2021). Um cidadão exemplar
Em cinco anos, dois deputados do parlamento britânico foram assassinados por motivações políticas. Jo Cox, do partido trabalhista, foi baleada e esfaqueada até à morte por um neonazi na semana que antecedeu o referendo que levou ao Brexit. O autor do crime foi, na altura, acusado de terrorismo e homicídio, condenado a prisão perpétua. David Amess, do partido conservador, sofreu idêntico destino faz hoje uma semana, esfaqueado por um radical islâmico à saída de uma igreja, no Essex. O autor do crime foi ontem acusado de terrorismo e homicídio "por razões ideológicas e religiosas".
Sir David tinha 69 anos. Jo Cox tinha 41. Desde 1990, no auge dos atentados bombistas do IRA, que um membro do parlamento não perdia a vida no Reino Unido. Neste ano, na sua autobiografia, David Amess escrevera que o regresso da violência ao espaço público britânico impediria os representantes do povo de estarem em contacto próximo com o eleitorado. Amess pereceu a defender essa tradição.
Nascido em Londres, em 1952, o conservador foi eleito pela primeira vez em 1983 e não mais saiu da Câmara dos Comuns, sendo um célebre backbencher por quase 40 anos. Nunca esteve num governo, mas fez de tudo para Southend - o seu círculo - ganhar estatuto de cidade. Católico praticante, ecologista e defensor acérrimo dos direitos dos animais, fez campanha pela saída da União Europeia mas não se deixava confundir com as fações mais radicais do seu partido. Mantinha amizades com protagonistas da trincheira oposta, como Sadiq Khan, mayor londrino que o conhecera antes de vir para a política, como advogado de um eleitor. "Era um homem terno", recordou o trabalhista. Boris Johnson usaria o mesmo adjetivo.
A sua morte provocou consternação geral, com primeiro-ministro e líder da oposição (Keir Starmer) a visitar juntos o local do episódio. Nos Lordes, o arcebispo de York propôs erigir um memorial. Dezenas de membros do parlamento estão, de acordo com a imprensa inglesa, hesitantes em permanecer em funções após a sequência de ataques contra os seus colegas. De ameaças antissemitas a deputados a perseguições de negacionistas a governantes, não esquecendo o esfaqueamento de Stephen Timms, em 2010, que sobreviveu, o clima de violência em torno dos políticos britânicos é uma realidade crua, chocante numa das mais ancestrais democracias da Europa. Ali, ser político tornou-se uma profissão de risco.
David Amess era um thatcheriano e fora ela a inspirá-lo a dar os primeiros passos na política. Ele, como Margaret Thatcher, era um conservador de origens modestas, criado numa casa onde a retrete morava no exterior. Das ameaças anónimas que recebia, ignorava a maioria e mantinha reuniões abertas a qualquer eleitor que se apresentasse. Preferia a sua terra à fanfarronice de Whitehall e deplorava a política moderna e artificial, distante das pessoas. Falava pouco; era mais de ouvir.
No dia 18, Westminster reuniu-se para homenagear Sir David, com um momento de silêncio acordado entre as bancadas e uma missa na igreja de Santa Margarida. No restante continente, a perda passou algo despercebida. Mas o modo como partiu não deixa de constar como alerta aos regimes, como o nosso, em que a liberdade tende a ser tomada por garantida.
Colunista