Sim ou não ao dólar americano: o jogo das moedas
Desde meados do século XX, o dólar americano tem sido a divisa de referência mundial, quer ao nível das trocas comerciais quer das reservas dos bancos centrais. Mesmo depois de agosto de 1971, quando o Presidente Richard Nixon decidiu acabar com a convertibilidade automática e fixa do dólar em relação ao ouro.
Nos últimos tempos, vários dirigentes de países do Sul têm expressado o anseio de sair das malhas do dólar e utilizar as moedas nacionais no comércio internacional e o renmimbi chinês como uma possível divisa de reserva. A intenção seria reduzir a influência hegemónica americana e procurar evitar, entre outras coisas, o que aconteceu ao Banco Central da Rússia, que viu mais de 300 mil milhões de dólares serem congelados pelos bancos centrais do ocidente, no seguimento da sua agressão armada contra a Ucrânia. Permitiria, também, reduzir o impacto de eventuais sanções económicas que Washington decidisse impor a um país hostil e debilitar a sua capacidade de se financiar nos mercados externos.
Teria igualmente uma justificação desenvolvimentista. Esse parece ser o objetivo dos 10 países membros da ASEAN, a Associação dos Estados da Ásia do Sudeste. Acabam de decidir que começarão progressivamente a utilizar as suas moedas nas trocas entre eles. É um pequeno passo, mas um passo revelador da tendência para o reforço das alianças entre países que partilham a mesma área geopolítica. Também resolveram aumentar as suas reservas em ouro, como outros estão a fazer. Só que o ouro é depois cotado em dólares americanos, nos mercados internacionais, e não dá juros nem dividendos.
Compreendo as razões por detrás destas decisões: estamos a caminho de uma constelação de círculos económicos de base regional, que pouco a pouco deverão servir de contrapartida à globalização. A grande questão é saber a que velocidade se poderá avançar nessa via. E não menciono as criptomoedas, por serem demasiado voláteis e de utilização periférica.
Dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostram que em 1999 os bancos centrais detinham 71% das suas reservas em dólares americanos. Em 2021, essa percentagem havia descido para 59%. Desde então, a proporção tem-se mantido estável.
O euro, oficialmente introduzido em 1999 e em circulação desde janeiro de 2002, representa pouco mais de 20% das reservas. Mas chegados a essa percentagem ficou-se por aí e o euro deixou de representar um desafio para a divisa americana. Esta é, aliás, uma das falhas políticas dos dirigentes europeus: não têm conseguido transformar o euro num instrumento de afirmação geopolítica. E isto apesar da dívida pública europeia ter uma classificação máxima (AAA).
Fala-se agora muito na divisa chinesa. As reservas dos diferentes bancos centrais em renmimbi andarão na casa dos 3%. Não é um montante espetacular. Podemos, no entanto, estar às portas de uma nova realidade. Tudo depende da flexibilidade que as autoridades chinesas estiverem dispostas a aceitar no que respeita à internacionalização da sua moeda. Mas não acontecerá da noite para o dia. Entretanto, é sabido que a China pretende aumentar a sua posição no conjunto de divisas em que se baseiam as operações do FMI -- o dólar australiano, a libra esterlina, o dólar canadiano, o euro, o yen, o franco suíço, o dólar americano e, claro, o renmimbi. Por outro lado, agora em matéria de comércio internacional, o renmimbi é utilizado em cerca de 10% das transações.
De resto, tem-se assistido a um amealhar de divisas emitidas por países desenvolvidos e estáveis. Ou seja, as moedas da Austrália, Canadá, Japão, Singapura e Suíça, principalmente. A diversificação dos portfolios resulta de uma gestão mais dinâmica das reservas dos bancos centrais, da facilidade na realização das transferências, dos níveis das taxas de juro e dos ganhos com os movimentos cambiais. Trata-se igualmente de baixar os níveis de risco financeiro, fora das considerações geopolíticas.
Mas a realidade tem muita força. Enquanto se continuar a produzir 102 milhões de barris de petróleo por dia e a determinar o seu valor em dólares americanos, será muito difícil combater a dominância da moeda dos EUA. Mesmo tendo em conta o impacto mundial, bastante negativo, das lutas políticas entre Republicanos e Democratas sobre a gestão da sua dívida pública, como agora acontece. Mas é no nosso interesse, neste lado do oceano, dar a prioridade ao reforço internacional do euro. Esta é a mensagem que me parece mais apropriada na altura em que se comemora o vigésimo quinto aniversário do estabelecimento do Banco Central Europeu.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU