Setenta anos de sanidade
"Are we sane?”, perguntava-se a abrir o livro. Passam 70 anos sobre a publicação de The Sane Society, de Erich Fromm (1900-1980), que, salvo erro, sintomaticamente, nunca foi publicado em Portugal. A Sociedade Sã (1955) é talvez a sua obra mais incisiva, esse psicanalista alemão que teve a audácia de pôr no divã não o indivíduo, mas a própria sociedade. E o diagnóstico não foi animador: vivemos numa civilização que produz neurose em série, apesar de toda a nossa riqueza material - ou precisamente por causa dela.
Fromm parte de uma premissa revolucionária: não são apenas os indivíduos que podem estar doentes. Sociedades inteiras podem sofrer de patologias coletivas. A nossa, argumenta ele, padece de uma “patologia da normalidade” - uma condição curiosa em que aquilo que consideramos comportamento normal é, na verdade, sintoma de uma sociedade em disfunção. É como se estivéssemos todos a tomar o mesmo remédio que nos mantém funcionais, mas nos deixa numa espécie de sonambulismo coletivo. O resultado é um sistema que tende a transformar pessoas em produtos, que privilegia o ter sobre o ser, que confunde movimento com progresso.
Uma das observações mais interessantes de Fromm prende-se com o que ele chama de validação consensual - essa tendência de tomarmos por verdadeiro aquilo em que a maioria acredita. Como ele nota, com alguma ironia: “É ingenuamente assumido que o facto de a maioria das pessoas partilhar certas ideias e sentimentos prova a validade dessas ideias e sentimentos. Nada poderia estar mais longe da verdade. (...) O facto de que milhões de pessoas partilhem os mesmos vícios não faz desses vícios virtudes.” É a tirania do consenso, esse mecanismo que nos poupa ao trabalho de pensar sozinhos.
Mas talvez a observação mais profética de Fromm seja sobre o futuro que nos esperava - e que, de certa forma, já chegou. “O perigo do passado era que os homens se tornassem escravos. O perigo do futuro é que os homens possam tornar-se robôs.” Setenta anos depois, com os nossos algoritmos, as nossas redes sociais, os nossos empregos cada vez mais automatizados e alienantes, percebemos que Fromm não estava a fazer ficção científica. Estava a fazer diagnóstico.
A robotização de que fala não é apenas tecnológica, é existencial. É essa transformação do ser humano numa peça de uma engrenagem maior, que funciona sem questionar muito, que consome com facilidade, que produz sem necessariamente criar. O robô não se rebela, é certo, mas também não parece estar verdadeiramente acordado - e uma vida sonâmbula pode tornar-se pesada, mesmo quando exteriormente cómoda.
Fromm não se limita a diagnosticar e avança com propostas. Pouco impressionado tanto com o capitalismo desenfreado, quanto com o comunismo autoritário, defende uma terceira via assente no que chama socialismo humanista. A sua sociedade sã seria mais descentralizada, participativa, orientada para o desenvolvimento das pessoas e não apenas para o crescimento económico. Seria uma sociedade que desse mais espaço ao amor, à criatividade, à espontaneidade - coisas que tendem a ser secundárias numa civilização obcecada com eficiência e resultados.
Claro que isto pode soar a utopia para tempos de peace and love que já lá vão. Mas talvez seja precisamente porque não levámos Fromm a sério que nos encontramos onde estamos: numa época de lideranças banais, de crescente alienação, de polarização extrema, de ansiedade coletiva. Uma época em que, parafraseando o próprio Fromm, milhões de pessoas partilham as mesmas neuroses e chamam a isso normalidade.
Numa altura em que debatemos Inteligência Artificial, precariedade laboral, saúde mental, crise democrática, Fromm oferece-nos uma lente através da qual podemos ver que estes não são problemas isolados, mas sintomas de uma patologia social mais profunda. A Sociedade Sã não é apenas um livro sobre o que está mal; é um convite a imaginar uma forma diferente de viver em comum.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa