Semanologia: O lugar do espectador

Atribui-se a Pitágoras (c. 570-495 a.C.) a seguinte alegoria, que se diz, ocorreu a propósito dos Jogos Olímpicos:

"A vida pode muito bem ser comparada com estes jogos públicos, pois, na vasta multidão aqui reunida, alguns são atraídos pela possibilidade de lucros, outros são levados pelas esperança e ambição de fama e glória. Mas entre eles há os que vieram para observar e compreender tudo o que aqui se passa. É o mesmo com a vida. Alguns são influenciados pelo amor à riqueza; outros são cegamente levados pela febre louca do poder e dominação. Mas o melhor tipo de homem entrega-se à descoberta do sentido e propósito da própria vida."

Pitágoras referia-se a comerciantes (procura do lucro), a desportistas e artistas que se apresentavam no estádio (esperança e ambição de fama e glória), e a espectadores (que vieram para observar tudo o que aqui se passa). Estas três categorias de pessoas presentes no estádio - comerciantes, desportistas e artistas (espectadores), corresponderiam aos três tipos de pessoas que podemos encontrar: o primeiro, influenciados pelo amor à riqueza; o segundo, pelo poder; os terceiros, pela vontade de encontrarem o sentido da vida. Para Pitágoras, a posição de excelência seria a terceira, a posição do espectador, que seria a posição do filósofo - contemplação, inquirição, análise, elaboração dos fins maiores da existência.

"A vida que hoje nos sopra, exige, em dados momentos, a sabedoria de saber olhar e ver o que se passa, mas também a coragem de subir ao palco ou nos fazermos à pista e correr - até que a voz doa."

Li esta metáfora na adolescência, na História da Filosofia de Bertrand Russell, por sinal, não uma das melhores. Como acontece com muitas leituras na fase de formação pessoal, marcou-me e tomei esta proposta organizativa das categorias humanas como certa. Depois, com o passar dos anos, apercebi-me de que a alegoria, por natureza, era uma simplificação. E que, amiúde, as três categorias se cruzavam: comerciantes filósofos, artistas comerciantes, filósofos sedentos de poder. Reparei que, na vida, apesar do lugar do espectador ser uma posição privilegiada, o mesmo não é, por si, o lugar da excelência. De facto, não há hierarquia ou maniqueísmo entre as três categorias humanas mencionadas - os que comerciam, os que se exibem e procuram a legitimação e o poder correlativo, e os que contemplam e inquirem. Estas categorias complementam-se e, inclusivamente, carecem de experienciação mútua: um espectador que nunca tenha estado no lugar do atleta, o artista, que não se tenha esforçado na pista da competição ou no palco, terão dificuldade de apreciar, extensivamente, o que os move. Todavia, esta afirmação é, também, uma falácia: seguindo esta ordem de raciocínio, só passando por dada experiência se poderia validá-la ou criticá-la. Seria preciso drogar-se para falar de droga ou matar para saber criticar assassinos. Nem sempre é necessário praticar dada experiência para ter uma posição sobre um tema. E haverá outras circunstâncias em que tal se recomenda.

O lugar do espectador é um lugar apreciável e de onde se pratica a apreciação. Espectador das artes, da política, de uma celebração religiosa, de um jogo, da guerra. Espectador de si próprio, e das pessoas e coisas próximas e distantes. O espectador, pode sê-lo em dado momento, mas a sua posição não se cristaliza na permanência. Quem especta, em outros momentos, age. Ou a atitude de espectador é ela, por si, uma forma de agir. A vida que hoje nos sopra, exige, em dados momentos, a sabedoria de saber olhar e ver o que se passa, mas também a coragem de subir ao palco ou nos fazermos à pista e correr - até que a voz doa.

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