Semanologia: A guerra dos cartazes

Há algumas semanas, a retirada de cartazes políticos que têm circundado a rotunda do Marquês de Pombal, em Lisboa, pela Câmara Municipal, anima o debate político. O PCP ameaçou com a lei e a Comissão Nacional de Eleições e o Chega com uma queixa-crime, enquanto tomou a iniciativa de lá voltar a colocar um cartaz, abrindo um braço de ferro.

O debate faz-se entre o que a lei diz, o direito dos partidos políticos a promover as suas ideias e o modelo de vida urbana desejável.

1. O que a lei diz. Podemos pegar neste assunto pelo que a lei diz sobre o direito dos partidos políticos ou sobre o que a lei diz sobre o direito à arquitetura e à paisagem. Vou começar pelo segundo aspeto. Existem várias convenções internacionais relativas à importância da arquitetura e da paisagem. Restringindo o meu comentário a algumas normas em Portugal, relembro que a Lei 9/70 (sim, ainda do período Marcelista), previu instrumentos para a defesa da paisagem natural, mas abrindo espaço concetual para uma ideia de articulação entre paisagem natural e presença humana. Vale a pena citar: "Base I - Para proteção da Natureza e dos seus recursos incumbe ao Governo promover: a) A defesa de áreas onde o meio natural deva ser reconstituído ou preservado contra a degradação provocada pelo homem; b) O uso racional e a defesa de todos os recursos naturais, em todo o território, de modo a possibilitar a sua fruição pelas gerações futuras". E diz a Base III: "As medidas de proteção são extensivas a espaços previamente demarcados, em razão da paisagem, da flora e da fauna existentes ou que seja possível reconstituir, das formações geológicas e dos monumentos de valor histórico, etnográfico e artístico neles implantados". Esta norma, revogada, foi substituída por sucessivas normas de proteção da paisagem e da arquitetura. Aliás, o artigo 66º da Constituição de 1976, diz que "Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender". E mais à frente, de forma específica, "incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos," nomeadamente, "promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitetónico e da proteção das zonas históricas". Em 2007, foi aprovado, por lei, o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território. Mais tarde, em 2015, a Resolução de Conselho de Ministros n.º 45/2015, de 4 de julho, aprovou a Política Nacional de Arquitetura e Paisagem. Sendo um documento programático que vale a pena ler, a dada altura diz que "pretende -se que Portugal seja uma nação onde os cidadãos em geral e as organizações em particular, sejam elas públicas ou privadas, assumam a necessidade de contribuir para a divulgação e a disseminação das boas práticas e dos bons exemplos que integrem critérios de qualidade, de estética, de durabilidade e racionalidade nos vários processos de transformação, proteção e reabilitação do meio urbano e rural, dos seus espaços, das suas construções ou dos seus elementos naturais e paisagísticos". Finalmente, o Plano de Ação 2021-2024 da Política Nacional de Arquitetura e Paisagem, em vigor, diz que é seu objetivo (entre outros) a proteção e valorização do património cultural e natural português, procurando para o efeito "implementar a excelência nas intervenções arquitetónicas e de ordenamento das áreas urbanas e rurais, garantindo que são planeadas e executadas em respeito pelo património cultural e natural". Onde quero chegar, agora que, em julho passado, a Câmara Municipal de Lisboa abriu o procedimento para a classificação do Marquês de Pombal e Parque Eduardo VII como conjunto de interesse municipal, é que o fez com base em legislação específica sobre as competências dos municípios, mas mais, ancorada num amplo quadro legislativo sobre a importância de proteção da paisagem urbana. Lamenta-se, aliás, o silêncio da Direção-Geral do Património Cultural sobre esta matéria. É que, pela Portaria 385/2013, que assinei na qualidade de membro do governo com a tutela da Cultura, classifiquei como Património de Interesse Público, a Avenida da Liberdade (coisa que devia ter sido feita por governos anteriores bem mais cedo, para evitar toda a destruição de edificado a que se assistiu entretanto) e as freguesias do Coração de Jesus, de São José, de Santa Justa e de São Mamede, por assumirem um "valor fundamental para a história e para a identidade de Lisboa, apresentando-se como espaço público de notável carga simbólica e projeção nacional". Como bem se compreende, o Marquês de Pombal encontra-se na confluência deste bem de Interesse Público.

2. O direito dos partidos a promoverem as suas ideias. Este é um direito inalienável. Os partidos políticos são a base do sistema democrático e a Constituição e a lei protegem de forma inequívoca o seu direito de veicular, publicamente, as suas ideias, nomeadamente, através da ocupação do espaço público. Mas este direito deve sobrepor-se a todos os outros? É aceitável que o exercício da política partidária degrade a qualidade visual do espaço urbano, com todas as consequências que esta degradação tem para a vivência da cidade pelos seus habitantes e visitantes? Creio que não. Os partidos têm o dever de promover a qualidade de vida dos cidadãos e há muitas maneiras, físicas e digitais para chegar a eles. Esperemos que haja sensatez suficiente para equilibrar o direito à ação política e o direito à qualidade de vida.

É aceitável que o exercício da política partidária degrade a qualidade visual do espaço urbano, com todas as consequências que esta degradação tem para a vivência da cidade pelos seus habitantes e visitantes? Creio que não.

3. O modelo de vida urbana desejável - escrevi, em agosto passado, neste jornal, sobre Lisboa. Não repetindo o que disse, queria dizer como é importante dar sinais de defesa do ecossistema urbano, espaço dos cidadãos e da Natureza. Fez bem Carlos Moedas em determinar a retirada dos cartazes do Marquês de Pombal. Espera-se é que todos os partidos políticos, o Estado e a sociedade civil percebam e apoiem esta medida. E que a mesma seja um contributo a extrapolar para novas formas de comportamento face à ocupação do espaço público pelos partidos políticos. Precisamos deles. Mas há mais vida para lá do debate político-partidário. Ou não?

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