Sem tolerância não há democracia
As imagens correram o mundo. Os reis de Espanha, acompanhados pelo primeiro-ministro Pedro Sánchez e pelo presidente da Comunidade Autonómica da Valência, Carlos Mázon, foram insultados e atacados por uma multidão que, aos gritos de “assassinos” e “fora”, protestava contra o facto de as autoridades espanholas terem demorado quatro dias a socorrer os sobreviventes das inundações causadas pela DANA, no bairro valenciano de Paiporta.
Segundo a imprensa do país vizinho, Pedro Sánchez terá fugido ao primeiro sinal de problemas, mas o rei Felipe VI e a rainha Letizia continuaram no local, apesar dos insultos, das pedras e da lama que alguns populares lhes lançavam. O rei e a rainha tentaram acalmar os ânimos e consolar as pessoas que tinham perdido familiares, as casas e tudo o que possuíam.
Embora não tenha responsabilidades executivas na governação, o rei deu a cara pelo Estado espanhol num momento de grande tensão, demonstrando coragem e sangue-frio, mas também empatia e compreensão face àquelas centenas de pessoas afetadas pela tragédia. Ainda não foi o “23-F” de Felipe VI, mas aqueles breves minutos em Paiporta fizeram mais pela imagem da família real - e por uma dinastia repleta de figuras pouco recomendáveis - do que uma década de discursos solenes em salões engalanados. Já os políticos eleitos, que têm de facto responsabilidades na resposta das autoridades à catástrofe que se abateu sobre a região de Valência, saíram deste episódio com a imagem ainda mais fragilizada.
Todos sabemos que algumas monarquias são mais livres do que muitas repúblicas; e que numa monarquia moderna os soberanos reinam, mas não governam. Mais: reinam com o consentimento da maioria. E o que faz uma democracia não são aspetos formais como o facto de existirem eleições regulares ou leis que, no papel, garantem as mais amplas liberdades aos cidadãos. Afinal, a Coreia do Norte também as tem. “Todos os cidadãos têm direito à liberdade de expressão, de imprensa, de assembleia, manifestação e associação”, refere o artigo 67º da Constituição da República Democrática Popular da Coreia (do Norte). E continua a Constituição do Querido Líder, sem grande pudor: “O Estado deve garantir as condições para a livre atividade dos partidos políticos democráticos e das organizações sociais.” E por aí fora.
Na verdade, com um rei ou com um presidente, o que realmente faz um país livre é a solidez das suas instituições democráticas. É isto que torna possível que exista separação de poderes e tenha lugar, periodicamente, uma transição pacifica e consensual do poder, de acordo com a vontade do povo expressa em eleições livres e justas. A democracia não é o Governo dos melhores, ou dos mais competentes, nem o sistema político que vai permitir a construção de um mundo perfeito. Mas é o único que nos permite mudar de Governo sem necessidade de nos matarmos uns aos outros.
Essa é a principal vantagem da democracia, no fim de contas. Mas para isso é necessário que saibamos conviver em paz com a diferença, algo que se tem tornado cada vez mais difícil devido à crescente polarização. No dia em que os EUA vão a votos nas eleições mais polarizadas de que há memória, seria bom que todos se recordassem que estas não precisam de ser as “mais decisivas de sempre”, ou que o mundo não vai acabar se o outro lado vencer. Daqui a quatro anos haverá mais, se os dois lados estiverem à altura das responsabilidades.
Diretor do Diário de Notícias