Após o fecho de cada edição e desmontada a mesa de póquer, entre cujos fiéis também eu me contava, Sebastião Cardoso tinha o hábito de voltar à sua secretária e ainda por lá ficar tempo esquecido, fumando o seu charuto, lendo o jornal acabado de sair da rotativa ou, simplesmente, fazendo paciências com cartas de jogar..Nessa madrugada, o velho mestre, com mais de 50 anos de profissão, estava já sozinho naquele piso quando um elemento da impressão ou da estereotipia, segurando um rádio de pilhas, subiu a dar-lhe a notícia da movimentação de tropas em Lisboa ou a caminho da cidade..Ligou certamente ao chefe de Redação e aos subchefes Fernando Pires, José Ilharco e Santos Jorge. Em poucos minutos foi desencadeada a mobilização da equipa redatorial que permitiu, horas depois, pôr na rua uma “2.ª tiragem”..Não esperem da minha parte nenhum relato exaltante. Eu tinha entrado em maio de 1973, no mesmo dia do Rui Tovar, que acompanhei a Marvila para a sua primeira crónica de futebol. Com 21 anos de idade e 11 meses de jornalismo, pouco contribuí para essa histórica edição do DN..Quando cheguei ao jornal, abdicando da minha folga de quinta-feira, já estavam em ação os repórteres mais credenciados, gente com a experiência de David Lopes, Carlos Pina, Aníbal Mendonça, Zink Negrão ou Handel de Oliveira, acordados talvez pela secretária Alda Mafra..Na semana seguinte, teria igualmente de me contentar com a cobertura do 1.º de Maio Vermelho, que o MRPP organizou no Rossio, enquanto rios de gente convergiam para outro ponto da cidade na maior festa popular de que tenho memória. É claro que, arrumada a encomenda da Baixa, também eu fui testemunhar o banho de multidão no antigo campo da FNAT, logo depois rebatizado Estádio 1.º de Maio..No 25 de Abril, não cheguei a pôr o pé na rua. Alguém tinha de escutar em permanência as notícias da Emissora Nacional e, sobretudo, do Rádio Clube Português, assegurando que não perdíamos qualquer fio da meada. O controlo da concorrência levava a que houvesse, na secretaria do jornal, um funcionário cuja primeira tarefa da manhã era recortar e colar, lado a lado, as notícias que DN e O Século tinham publicado sobre os mesmos assuntos..Fiquei, portanto, o tempo todo de ouvido colado às telefonias. Noutro canto, o Vasco Félix sondava as ondas no seu equipamento de radioamador com o código CT1ZG. Guardo viva esta última imagem, mas não garanto que seja desse dia. Da minha tarefa lembro-me bem. Ia, à mão, enchendo de apontamentos folha atrás de folha, que um contínuo passava a apanhar de cada vez que vinha cortar os telexes da AFP, Reuters e ANI, a agência portuguesa que precedeu a Anop e a Lusa..Fernando Pires deu-me a ler, trazido do Brasil, o primeiro manual de jornalismo a que tive acesso. E a ele se deveu também a futura generalização das máquinas de escrever no DN. Mas isso foi depois..Em toda a Redação, por esses dias, só duas pessoas datilografavam os seus textos: João Falcato e Manuel L. Rodrigues, que partilhava gabinete com Manuela de Azevedo, uma das raras senhoras na imprensa portuguesa. O maior esbanjador de linguados era Luís de Oliveira Nunes. Com sua caneta de tinta permanente, assentava duas ou três palavras por linha e nunca mais de oito ou dez linhas por página..Revejo agora a capa da tal “2.ª tiragem”. O acervo de corpos e fontes de letra na manchete, onde avulta a frase Eclodiu um movimento militar, tem a marca gráfica de João Coito, que deve ter desenhado esse título com o credo na boca, dada a sua identificação com o regime em queda..Curiosamente, a imagem da primeira página, mostrando blindados no Terreiro do Paço, era ainda uma “telefoto transmitida de Londres”. Se calhar, opino eu 50 anos depois e com descuidada ironia, ninguém convocou com a mesma urgência o Figueiredo dos Touros ou o Fevereiro para revelarem os rolos no laboratório fotográfico.