Selfies, beijos e a clonagem humana reprodutiva em Belém
Todos sabemos que um "despacho neutral" é um despacho escrito de forma equidistante das margens de uma folha de papel tamanho A4. É formalmente perfeito e, se assinado pelo Presidente da República, de um requinte inexcedível.
Todos escrevemos aos nossos pais na qualidade de cidadãos, pelo menos uma vez por ano: "Exmo. Sr. Professor: por favor alerte o Sr. Reitor para a importância de ser financiado o projeto de investigação preparado pelo meu colega brasileiro." A seguir telefonamos: "Pai, é para o meu amigo que conheci em Copacabana e que me recebeu impecavelmente no Brasil. São só 4 milhões de euros."
Todos indagamos o que levou o pai das gémeas (empresário brasileiro julgado pela prática de graves crimes fiscais) a não escrever diretamente ao nosso Presidente da Republica e ser o filho deste (presidente da Câmara Portuguesa de Comércio de São Paulo) a fazê-lo: terá sido uma súbita artrose que o impediu de escrever?
Todos nos interrogamos por que motivo o Presidente da República não respondeu ao pedido que lhe foi endereçado, alertando para que não é da sua competência diligenciar pela prestação de cuidados de saúde no âmbito do SNS. Ou será que foi publicada uma portaria, a tentar solucionar o problema do difícil acesso a este serviço, através dos bons ofícios do Presidente da República? Ninguém questionou a sua constitucionalidade?
Todos estranhamos a inicial quase amnésia do nosso inteligentíssimo Presidente relativamente a um eventual pedido para que exercesse a sua magistratura de influência, relativamente a um tratamento médico que originou uma despesa pública de 4 milhões de euros, em parte provenientes do pagamento de impostos por parte de quem o elegeu e nele confiou. A cunha (o jeitinho brasileiro) faz parte da nossa tradição cultural e ofende o reconhecimento da igual dignidade social dos cidadãos. Não podem existir - nem cremos que existam - cunhas em Belém, que poderiam configurar a prática de crimes de abuso ou de desvio de poder.
Todos indagamos sobre o respeito pelo princípio da transparência da Administração, essencial ao bom funcionamento das instituições e do próprio Estado de Direito, no âmbito do nosso sistema administrativo: se a quase totalidade dos documentos que nele dá entrada e que por ele circula é digitalizada, como é dito ao público que se "perdeu" grande parte da informação relativa a uma despesa pública avultada feita no âmbito do SNS? Foram apagadas de vários sistemas informáticos as sucessivas informações relativas ao caso em apreço?
Até tudo ser esclarecido paira a dúvida: o pedido, de facto ulteriormente atendido, relativo às gémeas terá sido caso isolado, ou existirá um estranho caso de clonagem reprodutiva de pedidos posteriormente também atendidos, na Presidência da República? Serão apenas relativos a gémeas ou também a quádruplos ou quíntuplos?
"Com papas e bolos se enganam os tolos."
Com selfies e beijos...
Professoras da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa