Sei o que fizeste nas eleições passadas

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Não era certo, mas era expectável. As eleições nos Açores colocam o país político frente a decisões que vão marcar as próximas legislativas e desenhar o ciclo político que se segue. Façamos as contas do deve e do haver. Apesar de ser Governo na região nos últimos dois anos e de ter depois caído com estrondo, a direita pareceu capitalizar o cansaço e mal-estar dos últimos anos da governação socialista no país. A fragmentação partidária é hoje um dado adquirido, embora à esquerda o voto se tenha polarizado no PS. E a extrema-direita veio para ficar. Esta já não é matéria de flutuações de escolhas eleitorais - é uma sombra sobre o futuro da democracia portuguesa.

Pode parecer só gritaria, mas a ameaça da extrema-direita não se resume à torrente de ódio e a propostas descabeladas que vai semeando. Desde o início que o Chega disse explicitamente ao que vem. É um projeto de refazer o regime - “descartar” liberdades excessivas invocando a “ordem”; carregar sobre os grupos mais vulneráveis, já que a culpa do país ser pobre é dos pobres; redesenhar o sistema político para limitar a pluralidade da representação política; adestrar a imprensa; e, last but not least, através da privatização dos serviços públicos, distribuir rendas aos abonados empresários que têm financiado generosamente a sua expansão organizativa e as suas campanhas pelas redes sociais.

Ao contrário do que pensa a comunicação social encadeada, Ventura não é só um poço de vaidade que faz programação de entretenimento pelo choque - é o ponta-de-lança de um projeto com vastos apoios de “muscular” a democracia portuguesa. Por isso, no meio de tanta cacofonia após os resultados de domingo, é necessário não esquecer quem lhe deu a mão.

Temos memória. Foi nos Açores, em 2022, que o PSD fez o impensável: normalizou a extrema-direita e tornou o Chega um voto “útil”. Foi exatamente Bolieiro quem chumbou a hipótese de um Governo minoritário do PS, que tinha ficado à frente nas eleições, fazendo o primeiro acordo político com a extrema-direita na história da democracia portuguesa. Para chegar ao (pote do) Governo Regional, não se lhe viu qualquer hesitação.

Os resultados aqui estão. Nem estabilidade governativa na região, nem maioria absoluta do PSD nos Açores. A governação dos últimos dois anos andou aos solavancos entre birras e disputas de parceiros, até cair com estrondo e provocar estas eleições antecipadas. E, como se viu, a aliança dos últimos dois anos também não serviu de “vacina” contra o voto na extrema-direita. Contas feitas, hoje parece-nos inexplicável que em 2022 o PSD tenha escolhido alimentar o partido que lhe vai paulatinamente sugando eleitorado e quadros em contexto nacional.

O que Bolieiro fez em 2022 alterou definitivamente o quadro político nacional. A direita portuguesa já não é o que era e não vai voltar a ser o que foi. Vai seguir nos próximos anos alinhada em dois blocos internos, que se vão contrapor e aliar consoante o fluir dos eventos.

Sabemos que por essa Europa fora a extrema-direita tem hoje um espaço relevante no xadrez eleitoral. Não há uma razão para que tenha crescido, há várias – umas que traduzem tendências há muito em curso nas democracias liberais, outras que se devem certamente a razões domésticas. Esta nova extrema-direita soube capitalizar o mal-estar dos segmentos sociais mais penalizados e desprezados pelas políticas europeias das últimas décadas, aproveitando as raízes do nacionalismo conservador do século XX que, convenhamos, nunca foi extirpado. Mas o seu ascenso depois da crise financeira de 2008 deve de ser lido a partir dos efeitos sociais do lastro deixado pela austeridade e mal viver que ainda perduram, com impactos profundos e longos em segmentos das classes médias e classes trabalhadoras.

Mesmo assim, em Portugal, o crescimento dessa extrema-direita não é (apenas) sobre a vida dura. Vida dura, a maioria dos portugueses conhecem bem e há muito tempo. Ela medra porque o mantra do PSD triunfou no terrenos das ideias – a convicção de que não é que uma sociedade mais próspera não seja desejável, mas simplesmente não é possível. E onde não há um impulso de construir um futuro melhor só pode nascer a raiva e, a partir daqui, trata-se de partir em busca de culpados e distribuir punições. Por isso, em Portugal, o voto do Chega não nasceu porque o PSD ficou aquém do que prometeu; mas antes porque cumpriu o seu programa, impôs o seu mantra de um futuro esquálido e sem alternativa, e parte dele perdurou na governação das ‘contas certas’ do PS. Neste atoleiro em que nos encontramos, cabe aos democratas erguer a esperança para vencer o medo.



Investigadora do CES

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