Se o nome do papa significa algo, será um bom sinal

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Se o nome escolhido por um pontífice tem algum significado, o facto de o novo bispo de Roma, Robert Prevost, ter optado pelo nome régio de Leão XIV não pode ser ignorado. O seu antecessor, o argentino Jorge Maria Bergoglio, escolheu Francisco para trazer para o século XXI o legado do santo de Assis, o “louco” do amor incondicional, que há 800 anos protagonizou uma era de grande renovação espiritual da Igreja. De igual modo, ao decidir chamar-se Leão, Prevost evoca a memória do último papa que usou esse nome e que, no final do século XIX, liderou o catolicismo num processo de reconciliação com a modernidade e criou a Doutrina Social da Igreja, que ainda hoje influencia o pensamento político no Ocidente.

Leão XIII foi papa numa altura em que as sociedades ocidentais sofreram importantes transformações, devido à industrialização e à emergência do proletariado como força social e política. Após o extenso e reacionário pontificado de Pio IX, que perdeu Roma e os Estados Pontifícios para o novo Reino de Itália e se encerrou como prisioneiro no Vaticano, a Igreja estava acantonada numa espécie de reduto ultramontano, permanecendo à margem da modernidade e perdendo terreno para o socialismo e o anarquismo, sobretudo junto das massas operárias que buscavam justiça social numa era de grandes desigualdades. No seu longo pontificado (1878 a 1903), Leão XIII conseguiu em grande medida inverter esta tendência. Reabriu a Igreja às novas tendências da cultura e da ciência, estabeleceu relações amigáveis com países de todos os continentes e criou uma terceira via, entre o capitalismo e o socialismo, que daria origem à democracia-cristã. Com a sua encíclica Rerum Novarum (“coisas novas”), de 1891, Leão XIII procurou dar uma resposta católica aos problemas sociais que surgiram com a rápida industrialização e urbanização dos países ocidentais. Foi um marco na História da Igreja, abordando questões como a defesa da dignidade humana, a justiça social, o direito à propriedade privada, a importância do trabalho e a necessidade de sindicatos. Se, por um lado, Leão XIII condenava o coletivismo socialista, por outro recordava aos patrões o dever de pagarem salários justos aos seus trabalhadores, cabendo ao Estado defender os direitos de todos, sobretudo dos mais frágeis. E reafirmava a mensagem cristã do amor incondicional como a verdadeira solução para os males do mundo. Quem procura amar o próximo não pode explorar, discriminar, expulsar, agredir ou matar, porque o cristianismo assenta na ideia de que todos somos irmãos e iguais em dignidade. O alcance revolucionário deste ideal foi, juntamente com a promessa de vida eterna, que a quase todos consola, a grande força motriz que levou ao crescimento do cristianismo desde o tempo dos primeiros Césares. E foi a razão pela qual a nova crença começou por ser descrita, nessa era de perseguição, como a “religião das mulheres e dos escravos”, as pessoas mais frágeis do mundo clássico, que por vezes nem eram consideradas seres humanos. Com a Rerum Novarum, Leão XIII regressou, de certa forma, à pureza evangélica dessa Igreja primitiva, propondo um modelo de sociedade que defende a dignidade de todos e expressa uma opção preferencial pelos mais pobres, rejeitando ao mesmo tempo qualquer ideologia que prive o ser humano dos seus direitos e liberdades.

Ao contrário de outras teses da época, a Rerum Novarum permanece em larga medida atual, mas as mudanças sociais das últimas décadas e a evolução tecnológica obrigam, quiçá, a que seja revista. A Igreja que o novo papa Leão herdou tem pela frente desafios muito parecidos com aqueles que o seu homónimo enfrentou há 130 anos. Tal como em 1891, sente-se sitiada por uma modernidade que vê como hostil e onde as soluções para os problemas sociais são apresentadas como alternativas ao amor cristão. Mudar este estado de coisas deverá ser o grande desafio do novo papa Leão XIV, mais do que atender a questões de costumes que prendem a atenção de muitos comentadores, mas que, em termos práticos, não têm a importância que por vezes se lhes atribui, se de facto a Igreja for “de todos e para todos”, como pregava Francisco.

Será a Igreja capaz de oferecer uma resposta credível para os grandes problemas geopolíticos, sociais, ambientais e éticos do nosso tempo, afirmando-se como uma alternativa aos extremismos de esquerda e de direita que crescem nesta era de polarização ideológica? Será Leão XIV capaz de propor um caminho que reafirme o amor como a solução para os problemas do nosso tempo e ajude a colocar a relação com Deus no centro das vidas dos crentes? Será Leão XIV capaz de unir as diferentes sensibilidades da Igreja, para que esta consiga infundir luz, paz e esperança num mundo onde milhões de pessoas procuram algo que dê sentido às suas vidas? Se conseguir fazer isto, o novo papa estará a prestar um bom serviço à Igreja, claro, mas também ao mundo, porque ódios, divisões e intolerâncias já temos que cheguem.

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