Se o IVA básico descesse, para onde ia o dinheiro?
1. Tocar no IVA é tocar num dos mais sensíveis pilares do país. Ele representa quase tanto como IRS+IRC juntos - 22 mil milhões contra 23. É por isso algo arrepiante ouvir defender-se a descida do IVA, citando-se Espanha, sabendo-se quão difícil é apurar quem fica com a margem não cobrada.
Na verdade, há enormes razões para se acreditar que em Portugal a medida não funcionaria. Estamos demasiado atomizados em oligopólios. As multas milionárias da Autoridade da Concorrência aos cartéis (todas contestadas em tribunal) são gigantescas e provam isso: perto de 500 milhões aos hipermercados, 225 milhões aos bancos, 54 milhões às seguradoras, 304 milhões às cervejeiras e um valor ainda por decretar aos laboratórios de análises. Isto para não falarmos do alinhamento às milésimas dos preços dos combustíveis nas autoestradas (mas a Galp, Cepsa, Repsol e BP não conseguem ser apanhadas...).
Não há, portanto, qualquer garantia de que os preços finais desceriam se o IVA fosse eliminado na alimentação. Alguém ficaria com o valor. Veja-se como o PS desceu o IVA da restauração para 13%. As refeições ficaram mais baratas? Esqueçam. E tudo o que Estado perde em IVA, cobra mais tarde ou mais cedo em IRS...
2. A inflação é outro tema terrível para a economia portuguesa. Se a pandemia já tinha distorcido brutalmente a situação económica entre sectores, agora a guerra na Ucrânia, as questões energéticas e o preço dos cereais geraram uma inflação média impensável há poucos anos e de novo muito assimétrica entre quem pode ou não repercutir impactos.
Um dos exemplos paradigmáticos desta distorção é a que se verifica no arrendamento comercial e de escritórios, com subidas de 10% (ou mais) das rendas. Noutro caso, também em formato "rendas", o Governo limitou a subida das portagens em 5% + 140 milhões pagos pelo Estado às concessionárias, admitindo um valor final de inflação de 8%.
A pergunta é: estes sectores, essencialmente rentistas, tiveram esta subida de custos em 2022? Basta olhar para as taxas de juro (na casa dos 3%) para percebermos como estão apenas a ganhar margem de lucro e a espalhar o veneno inflacionista transversalmente. A petrificação de conceitos jurídicos nos contratos está a consolidar o direito à captação de rendas, pelos "landlordes financeiros", sem um confronto com novas realidades. E não é o lucro que está errado. É o esventrar da economia sem qualquer equilíbrio entre produção e capital.
A agravar a situação está também o facto de atravessarmos um momento de tanto afluxo de capital e procura estrangeira. A pequena e média economia nacional começa a não conseguir suportar a escalada de custos da "selva" imobiliária.
O mundo dirige-se exatamente para este ponto: acumulação de capital na mão de muito poucos "rendeiros", quase sempre pouco ou não-produtivos, transferindo milhões de milhões para offshores ou zonas francas. Isso sucede no imobiliário, mas igualmente no digital e nas estruturas de comércio online, onde a dimensão conta e reduz cada vez mais a capacidade competitiva dos mais pequenos.
Portugal está muito vulnerável nesta economia de capital e tecnologia intensiva. E obviamente esta tensão acabará mal se desampararmos as pequenas lojas ou escritórios urbanos, cujo fecho representará muito menos emprego, o que não é bom para ninguém. Como tal, para se começar por algum lado, deveríamos limitar a capacidade dos especuladores imobiliários decidirem rendas sem qualquer crivo. Eles precisam de travão, sob pena de matarem o seu próprio negócio por excesso de ganância.
Jornalista